terça-feira, 5 de outubro de 2010

Regressar à Palavra


Setembro é o mês dos regressos! É o regresso à escola, ao emprego, à azáfama do dia-a-dia… Também para a Igreja, Setembro é o mês do regresso; retomam-se e programam-se as actividades pastorais. As comunidades paroquiais parece que retomam a energia e a vida.

A nossa Igreja Arquidiocesana, portanto, todos nós, retoma o seu plano pastoral dedicado à Palavra de Deus e convida-nos a Viver da Palavra. Importa que o acolher se oriente para o viver. Para acolher a Palavra de Deus, precisamos de entrar nesse grandioso mundo que é a Bíblia para ler, acolher, meditar, rezar e viver a Palavra. Infelizmente, a Igreja, ao longo de tantos anos, como que se esqueceu da Palavra. Felizmente que, agora, quer regressar ao fundamento da fé cristã, à fonte de toda a Tradição e Doutrina. Somos convidados a regressar à Palavra!

Para termos sucesso neste regresso à Palavra, o Concílio Vaticano II colocou a 18 de Novembro de 1965 um precioso documento introdutório para a leitura e escuta orante da Palavra de Deus, a Constituição Dogmática Dei Verbum. Muitos de nós já possuem a Bíblia, mas também seria importante adquirirmos este documento, que é pórtico da Bíblia. Ao longo deste ano pastoral, irei partilhar convosco algumas pistas de leitura da Constituição, esperando assim poder contribuir para um melhor acolhimento e vivência da Palavra de Deus.

Lê-se no número 12 da Dei Verbum: “Deus falou na Sagrada Escritura por meio de homens e de maneira humana”. A história da Bíblia é história da Palavra de Deus aos homens. Os Antigo e Novo Testamentos descrevem-nos o itinerário da Palavra de Deus, a qual: cria o mundo (Gn 1), chama Abraão (Gn 12, 1ss), é dirigida aos profetas de Israel (Os 1, 1; Jr 1, 2); assume o rosto de homem em Jesus de Nazaré (Jo 1, 1-14), “difunde-se, cresce e afirma-se com força” com a dilatação da Igreja Apostólica (Act 6, 7; 12, 24; 19, 20), regula o fim do universo e o início do novo mundo (Ap 19, 11-16; 21, 1 ss). É este itinerário que, ao longo deste Ano Pastoral, iremos percorrer num diálogo amigo com Deus, que nos fala em linguagem humana para fazer comunhão de vida connosco. A Revelação de Deus é descrita, neste documento, com a categoria da palavra, mais ainda, do diálogo amigável: “Em virtude desta Revelação, Deus invisível, na riqueza do Seu amor, fala aos homens como a amigos e conversa com eles para os convidar e admitir a participarem da Sua própria vida” (DV 2).

Vamos entrar nesta “conversa”?! Boa viagem de regresso à Palavra! Bom Ano Pastoral! A Senhora do Sameiro, Senhora Hospitaleira da Palavra, caminha connosco!


Arnaldo Vareiro


segunda-feira, 17 de maio de 2010

O ESPÍRITO SANTO

No próximo dia 23 de Maio, a Igreja celebra a Solenidade de Pentecostes, com a qual encerra o Tempo Pascal. O Espírito Santo, dom do Senhor Jesus Ressuscitado, continua a ser “o grande desconhecido da Igreja”. Por isso, deixamos aos nossos leitores esta reflexão sobre a Pessoa do Espírito Santo e os seus dons.
O Espírito Santo é Deus, como o Pai e o Filho. O Espírito está presente desde o princípio e na origem da criação (Gn 1, 2 e 2, 7) e aparece continuamente na história do Povo de Deus, manifestando-se de diferentes maneiras a diversos homens e mulheres. Estes tiveram a sensibilidade para O perceberem e deixarem-se seduzir por Ele, desde reis e profetas a pobres pecadores sem estudos.
Nesta reflexão sobre o Espírito Santo, propomos apenas algumas pistas e vários textos bíblicos para que o leitor possa ter a oportunidade de sentir a sua brisa e o seu calor, porque é sopro e fogo que vem a nós no Pentecostes. Os textos que sugerimos são do Novo Testamento, pois nos parecem apropriados para penetrar e viver este tempo do Espírito. No Novo Testamento, fala-se frequentemente do Espírito Santo. Também é chamado “Espírito de Deus”, “do vosso Pai”, “de Jesus”, “de Verdade”, “de vida”, o “Consolador”, entre outros nomes. Alguns exprimem claramente que Ele procede do Pai e do Filho. Além disso, é representado, na sua actuação, com os símbolos da pomba, do vento, do fogo, da água, do selo que marca…
A utilização desta simbologia não deve fazer-nos esquecer de que o Espírito é uma Pessoa e de que, na Bíblia, lhe são atribuídas faculdades próprias dos seres humanos: tem inteligência (Rm 8, 27); vontade (1 Cor 12, 11); sentimentos (Ef 4, 30 e Rm 8, 27); revela-se (2 Pe 1, 21); ensina (Jo 14, 26); dá testemunho (Gl 4, 6); intercede (Rm 8, 26); fala (Ap 2, 7); ordena (Act 16, 6-7); podemos contristá-l’O (Ef 4, 30); mentir-Lhe (Act 5, 3) e até falar contra Ele (Mt 12, 31-32).
O Espírito Santo é o sopro de Deus, o alento vital que transforma a nossa realidade, criando um coração novo no Povo de Deus, fortalecendo-o, animando-o interiormente, convertendo-o em testemunha da sua fé. Este Espírito manifesta-se, sobretudo, em Jesus, que depois no-l’O envia para que conheçamos a vontade de Deus e demos fruto.
Com o Pentecostes (Act 2, 1-11), a criação e o mundo inteiro recebem um novo impulso. Ao mesmo tempo, as comunidades cristãs tornam-se missionárias e lançam-se, sem temor, a anunciar a Boa-Nova a todos os povos. A Igreja nascente experimenta a acção do Espírito porque é purificada por Ele; o Espírito inspira-a, dá-lhe unidade e fortaleza, preside às decisões da Comunidade e edifica-a.

Os dons

Os dons vulgarmente atribuídos ao Espírito, não são exaustivos nem excludentes; resumem, porém, toda a acção que Ele realiza em nós. Todavia, acima de todos, há um dom que dá sentido a todos os outros: o dom do Amor. Não de qualquer tipo de amor, mas do que tem a sua expressão máxima na entrega da vida pelos irmãos. É este o maior dom do Espírito Santo. Sem ele, a nossa vida não tem sentido. O amor (ou a caridade) é a primeira acção de Deus: Ele criou o homem e o mundo por amor e, na plenitude dos tempos, Jesus Ressuscitado, por amor, salvou-nos da morte.

Os sete dons do Espírito Santo

Aprendemos, desde sempre, que os dons do Espírito Santo são sete. Mas este número tem um significado simbólico: plenitude, totalidade e perfeição. Os sete dons (tal como os sacramentos) pretendem resumir toda a acção do Espírito Santo nos cristãos. Constam do Livro de Isaías, da passagem em que o profeta refere as qualidades do futuro Messias:
“Sobre Ele repousará o Espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências, nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça, e com equidade os humildes da terra...” (Is 11, 2-4a).

Sabemos que os dons do Espírito não são ofertas passivas, mas que exigem uma resposta, como o profeta o diz claramente. Portanto, quem for movido pelo Espírito Santo, deve actuar desse modo. Meditemos um pouco sobre o significado e o sentido dos mesmos:

Sabedoria: consiste em conhecer a Deus. Ser sábio, segundo o Espírito, é conhecer e experimentar o amor e a bondade de Deus, que pratica a justiça e nos torna capazes de sermos também justos. Isto não se aprende nem nos livros, nem nos cursos, mas através de uma vida pessoal e comunitária de oração.

Entendimento: é o dom que nos ajuda a descobrir qual é a vontade de Deus nas grandes e pequenas situações quotidianas.

Ciência: este dom dá-nos a capacidade de discernir, vendo o que é bom e o que é o melhor. Dá-nos a conhecer o projecto de Deus para cada dia. Faz-nos agir de acordo com os princípios e valores cristãos.

Conselho: por meio deste dom, podemos dialogar fraternalmente com as nossas famílias e em comunidade cristã. Podemos ajudar quem precisa, orientando e colaborando para encontrar as melhores soluções. Pelo conselho e pela palavra oportuna, devemos animar os desanimados, encorajando-os a não baixarem os braços e, também, podemos encarar a vida com optimismo.

Fortaleza: este dom ajuda-nos a enfrentar as dificuldades e problemas, que, às vezes, parecem asfixiar-nos e impedir-nos o caminho, com coragem e energia. Ajuda-nos a vencer as tentações de abandonar Jesus e enveredar por um caminho mais fácil. Leva-nos a dar provas de mansidão e de alegria nas obrigações que nos compete cumprir como pais, trabalhadores, estudantes, políticos, catequistas, animadores da comunidade, etc.

Piedade: é o dom de Deus que nos faz descobrir o coração de Deus que nos ama profundamente. Também nos convida a entregar-Lhe o nosso e envia-nos aos irmãos que mais necessitam da nossa consolação. É o dom da Misericórdia.

Temor de Deus: este dom faz-nos reconhecer, humildemente, que Deus é sempre maior que tudo o que podemos imaginar e impele-nos a respeitá-l'O e a amá-l'O como nosso Pai.
Todos nós recebemos um ou mais dons para os partilhar na comunidade. Agir de outro modo, seria provar o Povo de Deus de algum serviço. Devemos receber estes dons ou carismas com acção de graças, sabendo que são ofertas que nos comprometem e que o Espírito dá a quem quer, quando e como quer.
Pois bem, os carismas e dons do Espírito são dados para a edificação da Igreja; compete à própria Igreja pronunciar-se sobre a sua autenticidade.


Oração:
Pai bondoso, derrama o teu Espírito sobre nós e faz-nos generosos no serviço dos outros. Que não nos fechemos nos nossos egoísmos para que, pelo nosso testemunho, em toda a surjam e progridam comunidades que sirvam e vivam como o Teu Filho Jesus Cristo. Amen.

Arnaldo Vareiro

segunda-feira, 19 de abril de 2010

TESTEMUNHO QUE CHAMA

 Celebramos, no próximo dia 25 de Abril, Domingo do Bom Pastor, a 47ª Semana de Oração pelas Vocações. Na sua mensagem para este dia, o Papa Bento XVI convida “os presbíteros, os religiosos e religiosas a serem fiéis à sua vocação, ajudando todos os cristãos a responderem à sua vocação universal à santidade”. O testemunho suscita vocações! O testemunho quotidiano e concreto de uma vida totalmente doada a Deus, na fidelidade e na alegria, impressionará e suscitará tantos homens e mulheres a experimentarem o dom da vocação. Assim o fez São João Maria Vianney no contacto com os seus paroquianos e com aqueles que procuravam os seus conselhos de pastor e guia. Todo o cristão é um ser vocacionado: em primeiro lugar, à Vida, depois, à vida de filho de Deus pelo Baptismo, levando este dom à perfeição através da vocação presbiteral, religiosa, matrimonial ou celibatária. Ser vocacionado é escutar, em cada época e em cada história, a voz de Deus, que Se comunica que variadíssimas formas. Quero, neste mês essencialmente vocacional, mostrar, caro leitor, como o Cura d' Ars ensinava com o testemunho da sua vida os fiéis a aproximarem-se mais de Deus e a serem interpelados por Ele; como o Santo era mediador entre o Senhor que chama e aquele ou aquela que sentia interpelado(a).

Contam os seus registos biográficos que, no ano de 1836, o casal Millet, de Mâcon, resolveu passar alguns dias em Ars para poderem estar com o Santo Cura d' Ars. Com efeito, puderam falar-lhe. Mas a filha Luísa Colomba, que tinha ido com eles, não queria de modo algum entrevistar-se com o servo de Deus. Não obstante, era boa e piedosa. Os peregrinos estavam prestes a sair de Ars, após uma semana de permanência naquele povoado. Foram pela última vez à igreja, quando o P. Vianney passava para a sacristia. Guiado por uma intuição sobrenatural, lançou à multidão um olhar penetrante e fez sinal com o breviário a Luísa Millet. Ela compreendeu logo. Tinha que se render. A multidão abriu-lhe passagem e com um gesto o Santo apontou-lhe o confessionário. A jovem ajoelhou-se. Depois de uma breve conferência, ouviu a palavra que iria orientar toda a sua vida. “Minha filha, serás religiosa visitandina. Deus o quer... Deus o quer”. A penitente resistiu. Mas o Cura d' Ars repetiu pela terceira vez: “Minha filha, Deus o quer”. As dificuldades que tinha a vencer pareciam insuperáveis. Todas se aplanaram por si mesmas. E Luísa Colomba, livre de todos os liames, levantou o voo para a arca santa. Morreu no mosteiro em 20 de Agosto de 1908, cheia de méritos, com a idade de 89 anos e com 64 de profissão religiosa.

Outro exemplo. “Meu padre, perguntava-lhe um sacerdote ajoelhado aos seus pés, hei-de alimentar em mim os desejos da vida religiosa, que sinto tão vivamente desde o segundo ano que estive no seminário maior, ou seja já aos vinte anos?” Respondeu-lhe o Cura d' Ars sem rodeios: “Sim, meu amigo, este pensamento vem de Deus; é preciso cultivá-lo.

  • Nesse caso, meu Padre, permitir-me-á deixar o cargo que ocupo (este sacerdote era professor num seminário menor) e entrar para uma ordem religiosa? Que acha melhor?

  • Devagar, meu amigo. Fique onde está. Saiba que Deus manda, às vezes, bons desejos, cuja realização nunca exigirá neste mundo”.

O P. Vianney, às pessoas casadas, fazia-lhes ver a grandeza da sua vocação, exortando-as a cumprirem santamente as suas obrigações. Uma senhora, que já tivera muitos filhos, ia ficar mãe novamente. Foi buscar coragem junto do Cura d' Ars. Não precisou de esperar muito, pois o Santo chamou-a de entre a multidão.

  • Estás tão triste, minha filha - observou-lhe quando se ajoelhou no confessionário.

  • Ah! Sim, já estou tão velha, meu Padre!

  • Ânimo! Não te assustes com o fardo! Nosso Senhor carrega-o contigo. O que Deus faz é bem feito. Quando concede a uma mãe muitos filhos, é sinal de que a julga digna de educá-los. É da parte d' Ele prova de confiança.


Estes três exemplos mostram-nos como São João Maria Vianney era um instrumento do qual Deus se servia para chamar, para guiar os homens no caminho da sua história. A santidade da sua vida e a sua prudência sobrenatural nas decisões inspiravam às almas justas uma confiança sem limites. Ser vocacionado é perscrutar em cada dia a voz e o sopro do Espírito; é testemunhar que vale a pena aspirar ao Mais!

Nunca esqueçamos de rezar pelas vocações! Confiemos à Senhora do Sameiro, Mãe do Sim, todos aqueles que se sentem chamados e inquietados por Deus para que saibam acolher, em cada dia, o que Deus quer!


Arnaldo Vareiro

terça-feira, 30 de março de 2010

EUCARISTIA, NUTRIÇÃO DOS FILHOS DE DEUS

O Tríduo Pascal do Senhor (Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus) começa na tarde de Quinta-Feira Santa, na qual Jesus institui, no Cenáculo de Jerusalém, a Santíssima Eucaristia e o Sacerdócio. A Igreja, todos nós como baptizados, é convidada a encetar com o Senhor Jesus este caminho desde o Cenáculo até à manhã de Páscoa. Este caminho inicia-se com a celebração da Eucaristia, na qual Jesus antecipa a sua entrega total na Cruz. Neste Ano Sacerdotal, reveste-se de particular importância este dia. Somos convidados a dar graças pelo dom do sacerdócio ministerial pelo qual Jesus Cristo perpetua o Seu Sacramento de Amor e a aproximar-mo-nos mais e melhor deste Amor doado totalmente. Para nos ajudar viver melhor este dia e em continuação do que partilhei convosco no número anterior, partilho convosco uma catequese que S. João Maria Vianney proferiu em Ars sobre a comunhão de Jesus Eucaristia:
“Meus filhos, todos os seres da criação têm necessidade de se nutrirem para viver; foi para isso que Deus fez crescer as árvores e as plantas; é uma mesa bem servida onde todos os animais vêm cada um tomar o alimento que lhe convém. Mas é necessário que a alma também se nutra. Onde está, pois, o seu alimento?... Meus filhos, quando Deus quis dar alimento à nossa alma para a sustentar na sua peregrinação neste mundo, olhou para todas as coisas criadas e não encontrou nada digno dela. Então concentrou-se em si mesmo e resolveu dar-Se a si próprio...
Oh! Minha alma, como és grande! Só Deus te pode contentar!... O alimento da alma é o Corpo e o Sangue de Deus!... Oh! Formoso alimento! A alma não se pode alimentar senão de Deus. Só Deus lhe pode bastar. Só Deus a pode saciar. Fora de Deus não há nada que possa saciar a sua fome. Necessita absolutamente de Deus... Que ditosas são as almas puras unidas a Deus pela comunhão. No céu resplandecerão como formosos diamantes porque Deus Se reflectirá nelas... Oh! Vida ditosa! Alimentar-se de Deus! Oh! homem, como és grande. Nutrido, abeberado com o Corpo e o Sangue de um Deus! Ide, pois, comungar, meus filhos!...”

Que palavras cheias de ardorosos apelos e exclamações sublimes nos deixa o Cura d' Ars! Somos convidados a permanecer no Lado Aberto do Senhor Jesus, trespassado no alto da Cruz. Pela comunhão eucarística, o Coração de Jesus estende a sua morada a cada coração humano. No Coração de Cristo, o Pai prepara-nos um banquete, ao qual não devemos faltar, pois a Eucaristia é o maior dom do amor de Deus e é necessário corresponder a tal dom. O Amor reclama amor.
Neste tempo pascal, saibamos permanecer, pela comunhão eucarística, mergulhados no abismo de misericórdia e beleza, isto é, na chaga aberta para sempre do Lado de Cristo, na e pela qual fomos salvos e redimidos dos nossos pecados!
Arnaldo Vareiro

sábado, 27 de março de 2010

O JESUS DA PÁSCOA

Não é fácil descrever o Jesus da sua última semana entre os humanos. Contudo, com os textos bíblicos nas mãos, poderíamos entrar no seu coração para percorrer com Ele o duro caminho da Paixão à alegria da Páscoa.

A entrada triunfal em Jerusalém não pode ter produzido n’ Ele os efeitos de uma mudança de consciência para o fazer sucumbir diante de tanto triunfalismo. Já o tinha pré-anunciado três vezes: o Filho do Homem devia sofrer e morrer em Jerusalém. Esta consciência da sua missão unia-se à compaixão de ver o seu povo “com ovelhas sem pastor”, à espera de um Messias e um Reino que tinham muito pouco a ver com Ele e com a sua mensagem. Jesus seguramente sabia que o “Hossana!” desse domingo se transformaria no “Crucifica-O” da Sexta-Feira Santa.

Dois dias antes da celebração da Páscoa com os seus discípulos, Jesus sai de Jerusalém para Betânia, a poucos quilómetros dali, onde Maria, a irmã de Lázaro, antecipa a sua sepultura ungindo-lhe a cabeça com um perfume valioso (Jo 12, 1-8). Betânia, para Jesus, era o lugar da amizade, era o calor do lar fraterno, onde o Mestre parece procurar a força humana oferecida pela proximidade dos amigos, antes de enfrentar a dor da traição de judas.

A dor que essa traição pode ter provocado em Jesus é incalculável. Sobretudo se a unirmos às traições dos outros discípulos que, embora sem receberem trinta moedas de prata como recompensa, adormecem quando Ele lhes pede que velem ao seu lado, não duvidam em abandoná-lo quando é levado ao tribunal e, inclusive, negam tê-Lo conhecido, como Pedro na noite de Sexta-feira Santa.

Os maus-tratos dos dois tribunais, a incompreensão da sua missão por parte de quem – supunha-se – melhor O devia entender, a humilhação das zombarias e o escárnio dos soldados, a sede, a dor dos chicotes, o peso da cruz... pouco a pouco iam destruindo o seu corpo para revelar a grandeza de Deus.

As dores sobre a cruz, a lenta agonia de quase três horas, são indescritíveis. Só nos resta contemplar em silêncio, ou melhor, descrevê-los servindo-nos do quarto cântico do Servo de Iahveh que Isaías escrevera:

“(...) Muitos ficaram espantados por causa dele, pois já não parecia gente, tinha perdido toda a aparência humana... desprezado e rejeitado pelos homens, homem de sofrimento e experimentado na dor; como indivíduo diante do qual se tapa o rosto, ele era desprezado e não fizemos caso dele... Foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca... Foi preso e julgado injustamente... A sua sepultura foi colocada junto dos ímpios e o seu túmulo junto dos ricos, embora nunca a mentira estivesse na sua boca...” (Is 52, 14; 53, 3-4. 7-9).

O Gólgota marca o ponto final do aparente fracasso: “Tudo está consumado” (Jo 19, 30). Jesus morre na cruz.

Contudo, no primeiro dia da semana, com as primeiras luzes da aurora, Jesus Ressuscitado aparecerá às mulheres que, chorando no sepulcro, pensam que alguém roubou o seu Senhor. Se o seu corpo glorioso não lhes permite reconhecê-Lo imediatamente, a doçura inconfundível da sua voz volta a expressar a compaixão de sempre: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” (Jo 20, 15).

E, ante a tentação da mulher para O deter, responderá com o desapego necessário para a missão que começa: “Vai dizer aos meus irmãos...” (Jo 20, 17).

A partir desse momento, à luz da Ressurreição, a Igreja celebrará, catequizará e anunciará o Senhor Jesus que, sendo embora de condição divina, “não Se apegou à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a Si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens. Assim, apresentando-Se como simples homem, humilhou-Se a Si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso, Deus O exaltou grandemente, e Lhe deu o Nome que está acima de qualquer outro nome; para que, ao Nome de Jesus, se dobre todo o joelho no Céu, na Terra e sob a Terra; e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fl 2, 6-11).

Através dos séculos, a genuína pregação da Igreja é a que foi fiel a este “Kerigma”, a este anúncio de Cristo crucificado; mas ao mesmo tempo ressuscitado pelo poder do Pai e constituído por Ele “Senhor e Messias” (cf. Act 2, 36).

Devemos aceitar que durante muito tempo a pregação e piedade popular tenham posto o acento na morte, ocultando a Ressurreição de Jesus.

É oportuno, por isso, realçar que essa “espiritualidade da cruz” também deve “ressuscitar” à luz da Vida nova do Ressuscitado.

A Igreja está ao serviço da vida porque é o corpo de Cristo, o Senhor da Vida. Desta forma, pretende tornar suas, em cada dia, as palavras de Jesus: “Eu vim para que tenham Vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).


Arnaldo Vareiro

sábado, 13 de março de 2010

Capítulo I da Dei Verbum - A REVELAÇÃO EM SI MESMA

(Natureza e objecto da Revelação)


2. Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério da sua vontade, por meio do qual os homens, através de Cristo, Verbo Incarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e n' Ele se tornam participantes da natureza divina. Por consequência, em virtude desta revelação, Deus invisível, na abundância do seu amor, fala aos homens como a amigos e dialoga com eles, para os convidar à comunhão com Ele e nela os receber.

Este plano “da revelação” concretiza-se por meio de palavras e acções intimamente ligadas entre si, de tal modo que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras. As palavras, porém, proclamam as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Todavia, o conteúdo profundo da verdade tanto a respeito de Deus como da salvação dos homens, manifesta-se-nos por esta revelação na pessoa de Cristo, que é simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelação.


A revelação aqui descrita é a revelação na sua fase activa e constituinte, que se concretiza pelas vias da história e da encarnação. Ela é um efeito do beneplácito de Deus: placuit (cf Ef 1, 9-10). É graça. É livre iniciativa de Deus. É obra de amor, que procede da bondade e da sabedoria de Deus. Reparemos que a bondade de Deus é colocada, pelo texto, em primeiro plano.

O Concílio personaliza a noção de revelação: antes de dar a conhecer algo, isto é, o desígnio de salvação, o próprio Deus se revela. Veja-se como o mistério Paulino evoca este desígnio salvífico. O mistério é o plano divino total; o mistério é Cristo.

Em que consiste o plano salvífico acerca da humanidade? O desígnio de Deus consiste em que os homens, por Cristo, Verbo encarnado, tenham acesso ao Pai (Ef 2, 18) no Espírito e se tornem participantes da natureza divina (2 Pe 1, 4). Este desígnio, expresso em termos de relações interpessoais, inclui os três principais mistérios do cristianismo: a Trindade, a encarnação e a graça.

Depois de afirmar o plano e o objecto da revelação, o concílio precisa a sua natureza. Deus, na superabundância do seu amor, sai do seu mistério. Deus rompe o silêncio: dirige-se ao homem, interpela-o e inicia com ele um diálogo de amizade, como fez com Moisés (Ex 33, 11) e com os apóstolos (Jo 15, 14-15).

Deus conversa com os homens para convidá-los à comunhão consigo e para recebê-los na sua companhia (Baruc 3, 38). Pela encarnação, Deus entra na existência humana, vive com os homens. Jesus Cristo é a sabedoria de Deus que baixou à terra e relacionou-se com os homens, falou-lhes.

Deus falou à humanidade pela palavra. O nosso Deus é o Deus da palavra: fala a Abraão, a Moisés, aos profetas, por meio deles, ao povo. Por Cristo, Deus fala aos apóstolos e nos fala, porque nele nos fala o Filho em pessoa. É uma palavra de amizade: procede do amor, cresce na amizade e realiza uma obra de amor. Deus entra em comunicação com o homem, sua criatura, para estreitar com ele laços de amizade e para associá-lo à sua vida íntima. A revelação quer introduzir o homem na sociedade de amor que é a Trindade.

O homem pode comunicar-se com outro homem de múltiplas formas (gestos, acções, palavras, imagens... Assim também Deus pode comunicar-se com o homem. A revelação revela-nos a forma adoptada por Deus para falar à humanidade. Deus põe-se em comunicação com o homem pelas vias da encarnação e da história.

O concílio afirma que a revelação realiza-se mediante a conexão íntima de gestos e palavras. Pela palavra temos de entender as acções salvíficas de Deus: umas realizadas directamente por Deus, outras pelos profetas, seus instrumentos. No AT: o êxodo, a formação do reino, o desterro, a restauração; no NT: as acções da vida de Cristo, especialmente os seus milagres, a sua morte e ressurreição. Palavras são as palavras de Moisés e dos profetas que interpretam as intervenções de Deus na história; são as palavras de Cristo que declaram o sentido das suas acções; são as palavras dos apóstolos, testemunhas e intérpretes autorizados da vida de Cristo. As obras e palavras estão em estreita dependência e para serviço mútuo. O Deus que se revela é um Deus que entre na história e nela se revela como pessoa que opera a salvação do seu povo > libertação. Estas obras corroboram, isto é, apoiam, confirmam, atestam a doutrina e a realidade profunda, misteriosa, escondida nas obras e significada nas palavras. As palavras proclamam as obras e esclarecem o mistério contido nelas. Vejamos o que se passa no Êxodo: sem a palavra de Moisés que, em nome de Deus, interpreta para Israel esta saída como libertação tendo em vista uma aliança, o acontecimento não estaria carregado de plenitude de sentido que constitui o fundamento da religião de Israel. Os acontecimentos estão cheios de inteligibilidade religiosa e as palavras têm a missão de proclamá-la e esclarecê-la.

Ao insistir nas obras e nas palavras como elementos constittutivos da revelação, o concílio quer sublinhar o carácter histórico e sacramental da revelação: os acontecimentos iluminados pela palavra dos profetas, de Cristo e dos apóstolos. O carácter histórico da revelação aparece na acção mesma de Deus que sai do seu mistério e entra na história. O carácter sacramental da revelação aparece na compenetração e ajuda mútua de palavras e obras. Deus realiza o acontecimento de salvação e explica o seu significado. Opera e comenta a sua acção.


Por esta revelação nos manifesta, em Cristo, a verdade profunda acerca de Deus e do homem. Cristo diz-nos quem é Deus: o Pai que nos criou e nos ama como filhos; manifesta-nos também o Filho e palavra, que nos chama e convida a uma comunhão de vida com a Trindade, e o Espírito, que vivifica e santifica. Em Cristo, se nos revela também a verdade acerca do homem, isto é, que foi chamado e escolhido por Deus desde antes a criação do mundo para ser, em Cristo, filho adoptivo do Pai.

Cristo é o mediador e a plenitude da revelação. É a via escolhida por Deus para dar-nos a conhecer quem é Ele (Pai, Filho e o Espírito) e o que somos nós (pecadores chamados à vida). Cristo é a plenitude da revelação, isto é, é o Deus que revela e o Deus revelado, o autor e o objecto da revelação, o que revela o mistério e o mistério mesmo em pessoa (Jo 14, 6; 2 Cor 4, 4-6; Ef 1, 3-14; Col 1, 26-27). É em pessoa a verdade que anuncia e fala. Esta verdade que nele resplandece pede a adesão do nosso espírito: quer invadir a nossa vida para transformá-la e transformar-mo-nos em Cristo; tende, pela união com Cristo, à comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito.

(Preparação da revelação evangélica)


3. Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo, oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na obra da criação e, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se pessoalmente, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Porém, depois da sua queda, tendo-lhes prometido a redenção, deu-lhes a esperança da salvação e cuidou continuamente do género humano, a fim de dar a vida eterna a todos aqueles que, pela perseverança na prática das boas obras, procuram a salvação. A seu tempo chamou Abraão, para fazer dele um grande povo, povo esse que, depois dos Patriarcas ensinou por meio de Moisés e dos Profetas, para que o reconhecessem como único Deus, vivo e verdadeiro, Pai providente e justo juiz, e para que esperassem o Salvador prometido. Desta forma, preparou Deus, através dos séculos, o caminho do Evangelho.


A primeira manifestação de Deus deu-se na Criação. Deus revelou-se a nossos primeiros pais pela revelação histórica e pessoal.

Etapas da revelação veterotestamentária: promessa aos nossos primeiros pais; vocação de Abraão; instrução do povo eleito por Moisés e pelos profetas.

Depois da queda dos nossos primeiros pais (pecado original), Deus levantou-os pela promessa da redenção. Com a promessa começa a história da salvação, na qual todos são incluídos, ninguém fica excluído. O Povo de Israel é o depositário desta promessa.

Deus chama Abraão para o fazer pai de um grande povo, que é instruído através de Moisés e dos profetas. Deus forma o Seu povo para que reconheça n' Ele o Deus vivo e verdadeiro, o Pai que cuida dos seus filhos e para que espere o salvador prometido.

O texto do Concílio apresenta-nos a revelação como sábia pedagogia que forma e prepara o povo.

Arnaldo Vareiro

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

QUARESMA EM "LOUVOR PERENE"

No passado dia 2 de Fevereiro, o Senhor Arcebispo Primaz dirigiu à Igreja de Braga a Nota Pastoral “Louvor Perene”, querendo marcar as comemorações dos 300 anos do Lausperene na Arquidiocese, que, segundo dados históricos, começou no tempo do Arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles, concedido pelo Papa Clemente XI em 12 de Outubro de 1709. Foi concedido primeiramente apenas à cidade de Braga, estendendo-se a toda a Arquidiocese aquando do 3º Congresso do Apostolado da Oração, realizado em Braga de 15 a 19 de Maio de 1957. Celebrar esta efeméride em pleno Ano Sacerdotal, é, refere D. Jorge Ortiga, “um dom de Deus, uma graça especial que merece a atenção de todos: pastores e fiéis. Somos convidados a dar graças pela imensa riqueza que, ao longo de três séculos, a Igreja Arquidiocesana recebeu com a sucessiva e contínua celebração do Lausperene. Mas somos também convidados a pensar que a Eucaristia é para o Sacerdócio e o Sacerdócio para a Eucaristia. Dois mistérios, dois sacramentos que tiveram a sua origem na Quinta-Feira Santa, no Cenáculo em Jerusalém. Jesus, Único e Eterno Sacerdote, quis perpetuar a Sua acção santificadora e salvífica através dos sacerdotes em Eucaristia.”
Temos vindo nos últimos números do nosso jornal a olhar para S. João Maria Vianney, modelo de vida sacerdotal, em várias facetas da sua vida. Neste mês, e em consonância com a proposta do nosso Arcebispo, convido-vos a olharmos para o Cura d’ Ars e a sua relação íntima e profunda com Jesus-Eucaristia.
S. João Maria Vianney “Não quereria ser pároco, mas estou muito contente de ser sacerdote para poder celebrar Missa” – disse o P. Vianney numa ocasião. Passava longos momentos ajoelhado, de mãos juntos e os olhos fixos no sacrário da pobre freguesia de Ars.
Em 1827, um pequeno estudante, que mais tarde chegou ao sacerdócio, ajudava-o como menino de coro e deixou este testemunho: “Estava admirado de o ver permanecer cinco minutos depois da consagração com as mãos e os olhos levantados, numa espécie de êxtase. Nós dizíamos, os meus companheiros e eu, que ele via a Deus. Antes da comunhão, parava alguns momentos; parecia conversar com Deus.” Muitos eram os que acorriam a Ars somente para o admirarem durante a celebração da Santa Missa, pois diziam que parecia-lhes ver “um anjo no altar”. Chorava durante quase toda a Missa. O exterior reflectia o que se passava no mais íntimo da alma: não fazia gestos exagerados ou inúteis; os seus olhos oravam ou contemplavam, ora elevados, ora baixos; as suas mãos suplicavam postas ou estendidas. Era uma pregação muda de uma eloquência sublime! Tudo nele respirava adoração!
Certa manhã, atormentava-o de tal modo o pensamento do inferno e o medo de perder a Deus para sempre, que gemia interiormente: “Ao menos deixai-me a Virgem Santíssima.” Durante uma Missa de Natal, à meia-noite, cantou-se depois da elevação um hino bastante comprido. Segundo o rito lionês, o celebrante devia, a partir de certo momento, sustentar a hóstia consagrada sobre o cálice até ao Pai Nosso. Então, conta uma testemunha, “vi como olhava aquela hóstia, ora com lágrimas, ora com um sorriso. Parecia falar-lhe; depois vinham as lágrimas e em seguida os sorrisos.” Depois da Missa, pedimos-lhe desculpa na sacristia por o termos feito esperar tanto tempo. “O tempo passou sem que me desse conta”, foi a resposta.
- Mas, Sr. Cura, que fazia quando tinha a hóstia consagrada nas mãos? Parecia estar muito comovido.
- Com efeito, ocorreu-me uma ideia feliz – respondeu o santo - Dizia a Nosso Senhor: Se soubesse que hei-de ter a desgraça de não Vos ver na Eternidade, visto que agora vos tenho nas mãos, não Vos largaria mais!”
Celebrar a Eucaristia em Igreja, Povo Sacerdotal e reunido pela Palavra de Deus, é celebrar a aliança entre o Esposo, Jesus Cristo, e a Sua Esposa, a Igreja. Saibamos neste tempo da Quaresma, a exemplo do Santo Cura de Ars, a não largarmos Jesus, Pão vivo descido do céu, mas a permanecermos em comunhão vital com Ele, que, cada dia na Eucaristia, cria e recria a Sua Esposa e a une consigo. A Quaresma deste Ano Sacerdotal seja um “Louvor Perene”, um “perder-se” no Esposo, que faz circular o Seu Sangue, a Vida Nova, em cada um de nós!
Arnaldo Vareiro

O CAMINHO DA QUARESMA

A celebração da Páscoa, como qualquer “tempo forte” da liturgia, é precedida por uma preparação intensa de conversão, chamada QUARESMA.
A palavra Quaresma (Quadragesima) quer dizer quarenta dias. Ao longo deste período revivemos os quarenta dias de Cristo no deserto e os quarenta anos de peregrinação dos israelitas pelo deserto até chegarem à terra prometida.
Com efeito, durante quarenta dias, Jesus prepara-se no deserto para o seu imediato ministério público, enfrentando as tentações e renovando a relação íntima com o Pai. Durante quarenta anos, o povo conduzido por Moisés, depois de sair do Egipto, a terra da escravidão, sofreu fome e sede; às vezes, sucumbiu face ao desânimo mas, antes de mais, viveu a experiência única da ternura de Deus (Ex 12-40).
É exactamente esta experiência de intimidade com Deus que todos os crentes devem reviver ao aproximar-se a Páscoa, para chegar com “a alegria de um coração purificado” à renovação das promessas realizadas no Baptismo, que é a aliança pessoal de cada cristão, e se encontrar profundamente com Cristo morto e ressuscitado na Eucaristia.
A nossa Arquidiocese de Braga continua a viver o seu programa pastoral “Tomar conta da Palavra que toma conta de nós”. Neste ano somos convidados a “Acolher a Palavra”. A Quaresma de 2010 deve ser para o povo de Deus um desafio exigente que o sensibilizará para escutar e acolher melhor o chamamento do Senhor, que nos convida à conversão.
Antigamente, no começo da Quaresma, a Igreja insistia mais nas modalidades da penitência; hoje, antes de mais, assinala-nos o seu objectivo me significado.
Mais do que o como fazer penitência, é importante saber o porquê, para que esta não se transforme numa prática superficial que não produz os frutos de conversão desejados.
A penitência da Quaresma orienta-se para Deus, a quem a honra, e para os irmãos, a quem consola. Nela se expressa com grande força a opção pessoal do discípulo de Jesus pelo duplo mandamento do amor: amor aos irmãos porque amamos o Pai misericordioso e cheio de ternura.
Mais do que uma ascese artificial e um mero cumprimento de preceitos, a Quaresma propõe a todos os homens que se esforcem por rever leal e sinceramente a sua maneira de ser, por descobrir onde se encontram no projecto que Deus tem para eles, o que é que querem e o que perceberam da vida cristã. Estes quarenta dias vividos com Israel no deserto, com Moisés, Elias e, sobretudo, com Cristo, são um período profundamente espiritual. Sabemos que devemos enfrentar a tentação, mas também sabemos que somos capazes de vencer com Cristo. Por outras palavras: realismo salutar e objectividade para nos reconhecermos pecadores, mas também esperanças renovadas diante da luz nova. Coragem para mudar, assim como para esperar…
Arnaldo Vareiro

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

UM SANTO JUNTO A OUTRO SANTO

O P. Vianney celebrou a sua primeira Missa na capela do Seminário Maior, onde, no dia anterior, tinha recebido a ordenação sacerdotal. Era uma segunda-feira, 14 de Agosto de 1815. os Vigários Gerais tinham-no nomeado para coadjutor da paróquia de Ecully, onde ficaria com o seu velho mestre, o Padre Balley. Assim, o filho adoptivo ficaria junto do pai. Seria o seu auxiliar no meio de tantos trabalhos e quem lhe fecharia os olhos.

Os paroquianos de Ecully participaram da alegria do seu pastor. Diziam: “O padre Vianney edificou-nos muito quando esteve entre nós. Quanto mais agora que é sacerdote!” Com efeito, logo depositaram nele toda a confiança.

O neo-sacerdote recebeu as faculdades necessárias para confessar, depois de muitos meses após a nomeação de coadjutor. É curioso notarmos que o primeiro penitente que se lhe prostrou aos pés foi o seu próprio confessor, o P. Balley em pessoa.

O primeiro acto ministerial do P. Vianney data de 27 de Agosto de 1815 – um baptizado. Desde que souberam que ele estava “aprovado” pela Cúria Arquiepiscopal, o seu confessionário foi assediado pelos doentes espirituais que não procuravam outro. Isto roubava-lhe muito tempo, fazendo-o negligenciar as próprias refeições.

Na catequese, explicava cuidadosamente o catecismo, tornando-se pequeno com os pequenos. No púlpito de Ecully era breve mas claro, não receando dizer as verdades mais duras e fustigar certos vícios. Pregava a pureza dos costumes e a perfeição da vida cristã. O P. Vianney era o primeiro a dar o exemplo. Era muito simples e muito franco. Orava e mortificava-se para dominar o mal, o pecado. Os seus recursos pessoais passaram para as mãos dos pobres, dava tudo o que tinha.

Deus, porém, não colocara o P. Vianney em Ecully somente para exercer o ministério paroquial; mandara-o para uma escola de santidade. O P. Balley era um sacerdote muito mortificado. Entre ele e o coadjutor estabeleceu-se logo uma aterradora emulação de austeridade; era, no dizer de um sacerdote da época, “um santo junto a outro santo!” Algum tempo depois, o P. Vianney fez esta humilde declaração: “Terminaria por saber um pouco mais se tivesse a dita de viver sempre com o P. Balley. Ninguém como ele fazia ver até que ponto a alma pode desenvencilhar-se dos sentimentos terrenos e o homem assemelhar-se aos anjos. Para se ter desejo de amar a Deus bastava ouvi-lo dizer: Meu Deus, eu vos amo de todo o coração.”

Estes dois sacerdotes levavam uma vida austera, fazendo refeições muito pobres, usando cilício, a tal ponto de o Vigário Geral afirmar: “Felizes de vós, povo de Ecully, por terdes padres que deste modo fazem penitência por vós!” Levavam uma vida em comum marcada pela amizade que os unia e também pelo elevado grau de piedade e de santidade.

Decorria o ano de 1816 e as primeiras semanas de 1817 quando o P. Balley, não passando dos 65 anos, envelhecido antes do tempo e caminhando para a eternidade, cai no leito devido a uma úlcera na perna, da qual nunca mais sarou. Dali em diante quase não tomou parte no ministério paroquial. Durante esse período cada vez mais penoso, de dia e de noite, substituía-o em quase tudo o abnegado coadjutor. Sofria sem se queixar. A 17 de Dezembro, depois de se ter confessado com o seu filho predilecto e depois de ter recebido a Sagrada Comunhão e a Santa Unção, cheio de méritos adormeceu no Senhor o venerado pastor de Ecully.

Conta-se que, depois de administrada a santa unção, os paroquianos retiraram-se, ficando a sós pároco e coadjutor. O moribundo deu ao P. Vianney os útlimos conselhos e recomendou-se às suas orações. Depois, retirando sob o travesseiro os instrumentos de penitência, murmurou-lhe ao ouvido: “Toma, meu filho, esconde isso; se os encontrarem depois da minha morte, julgarão ter eu expiado suficientemente os meus pecados, deixando-me no purgatório até ao fim do mundo.” As disciplinas e os cilícios do P. Balley, como veremos nos próximos números, não ficaram sem uso. O P. Vianney chorou-o como a um pai.

Pouco depois da morte do P. Balley, os paroquianos de Ecully apresentaram à Cúria de Lião um pedido para que o P. Vianney ficasse como pároco, mas a petição não logrou êxito, pois o interessado não quis aceitar como veio a confirmar mais tarde: “Não teria gostado de ser pároco de Ecully, a paróquia era demasiado importante.” Entretanto, o P. Tripier tomou o lugar do P. Balley, continuando o P. Vianney como coadjutor, mas não por muito tempo.

Em 21 de Janeiro de 1818 ficou vacante uma pequena capelania no departamento de Ains, pois o seu capleão, um jovem sacerdote de 27 anos, acabara de falecer tuberculoso, apenas contando 23 dias de trabalho no sagrado ministério. Ars estava vacante. Era uma aldeia pequena e pobre com 230 habitantes – valeria a pena mandar para lá um sacerdote? Uma intervenção pessoal da castelã do lugar, a menina Ana des Garets, que se empenhava em considerar a sua aldeia como uma verdadeira paróquia, apressou os Vigários Gerais a decidirem-se.

Nos princípios de Fevereiro, o P. João Maria Vianney, coadjutor de Ecully, foi avisado que a capela e a aldeia de Ars estavam confiadas ao seu zelo. Foi ter com Mons. Courbon que, ao assinar a provisão, lhe disse: “Não há muito amor de Deus naquela paróquia. Vossa Reverência procurará introduzi-lo.”

Em 3 de Fevereiro de 1818, o P. Vianney escreveu em Ecully o último acto do seu ministério. No dia 9, pela manhã, pôs-se a caminho de Ars.


Arnaldo Vareiro

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Ensina-nos o segredo, Ir. Fernanda!

Quando alguém escreve está a “defender a solidão em que está” (María Zambrano); é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável. Escrever é o contrário de falar; fala-se por necessidade momentânea imediata, fazêmo-nos prisioneiros do que pronunciámos, enquanto que no escrever se acha libertação e perdurabilidade. As grandes verdades não costumam dizer-se a falar. A verdade do que se passa no secreto seio do tempo é o silêncio das vidas, e que não pode dizer-se! A vida, a nossa vida, não se diz, escreve-se! A morte, essa sim, diz a vida; desvela o segredo da vida!

Faz hoje, 5 de Janeiro, um ano que a morte desvendou-me e contou-me um segredo: a vida da Ir. Maria Fernanda Sousa Fernandes! É impossível reduzi-lo a este espaço, mas não o poderei calar jamais porque algo me compele e a ordem que me é dada vem de fora. E o segredo tem duas faces: uma vida da música do coração e uma vida com o Amor no coração.

Grande era a paixão da Ir. Fernanda pela música, que lhe brotava com leveza do seu simples e grande coração, esse “espaço vital”, que vibra com os acordes doces da alegria, da bondade, da ternura, da simplicidade, da amizade. Todos eles compuseram essa sinfonia que durante 37 anos ressoou no coração daqueles que privaram com a Ir. Fernanda: a família, os amigos, os seus alunos, os membros da Obra do Amor Divino e tantos que com ela se cruzaram. Ela sabia que “o coração é a víscera mais nobre porque leva consigo a imagem de um espaço, de um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas ocasiões se abre” (María Zambrano). Este abrir-se é a sua maior nobreza, é o sinal da mais pura generosidade; torna-se activo, torna-se interioridade aberta, que arrasta todo o ser para esta dinâmica de pura vibração, de vida. Vida é esta incapacidade de um órgão desligar-se de outro, um elemento de outro.

O coração da Ir. Fernanda continua vivo porque passivo e dependente do Amor de Deus. Aos 34 anos de vida, ela quis, na Obra do Amor Divino, que o seu profundo fosse um espaço diferente, um espaço criado pela acção de algo não feito para estar no espaço e que o cria para que alguém que vive no espaço e anda por ele possa contactá-lo. O profundo é uma chamada amorosa. O coração é esse trabalhador constante do “conhece-te a ti mesmo” (Sócrates) diante do Deus Amor.

Foi no dia 6 de Agosto de 2007, Festa da Transfiguração do Senhor, que a Ir. Fernanda quis montar a “sua tenda” com Cristo, sabendo que a Glória pedia o caminho da cruz. Os últimos dias da sua vida foi um autêntico caminho de dor, mas uma dor co-redentora porque unida à paixão de Cristo. Que belo segredo nos contou a vida, sobretudo da doença, da Ir. Fernanda: transportar a dor com sentido e no Sentido! Como encarnou e enraizou no seu coração a espiritualidade da Obra do Amor Divino: oferecer-se continuamente no altar da vida quotidiana, amando a Deus e os irmãos!

Trazia de tal modo Deus no coração, que “estou de que nem a morte... a separou do amor de Deus (Rom, 38-39). Deus a acompanhou na morte, notada pela serenidade e total passividade n'Ele que no seu rosto transparecia. “Senhor, nas tuas mãos entrego a minha vida, o meu ser, a minha pessoa.” Foi com esta confiança que a Ir. Fernanda atravessou esta última porta e foi acolhida pelo Deus amor, criador amoroso. Deus fechou por ela a porta da vida terrena e da morte ao abrir os seus braços para acolher o seu ser para a ressurreição, para a comunhão dos bem-aventurados, porque a sua vida foi uma permanente configuração ao amor de Deus.

Hoje, às 17 horas, na igreja paroquial de Travassos (Póvoa de Lanhoso) nos reuniremos como assembleia de irmãos que creem no Deus que salva por amor para Lhe darmos graças por nos ter contado este terno e belo segredo que foi a tua vida, que foste tu!

Um dia nos encontraremos contigo e, em Cristo, viveremos a grande festa da Ressurreição; até lá, ensina-nos a fazer da nossa vida uma suave melodia para Deus e para os irmãos!


Arnaldo Vareiro

(Publicado no jornal "Diário do Minho" em 5.1.2010)