sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

UM SANTO JUNTO A OUTRO SANTO

O P. Vianney celebrou a sua primeira Missa na capela do Seminário Maior, onde, no dia anterior, tinha recebido a ordenação sacerdotal. Era uma segunda-feira, 14 de Agosto de 1815. os Vigários Gerais tinham-no nomeado para coadjutor da paróquia de Ecully, onde ficaria com o seu velho mestre, o Padre Balley. Assim, o filho adoptivo ficaria junto do pai. Seria o seu auxiliar no meio de tantos trabalhos e quem lhe fecharia os olhos.

Os paroquianos de Ecully participaram da alegria do seu pastor. Diziam: “O padre Vianney edificou-nos muito quando esteve entre nós. Quanto mais agora que é sacerdote!” Com efeito, logo depositaram nele toda a confiança.

O neo-sacerdote recebeu as faculdades necessárias para confessar, depois de muitos meses após a nomeação de coadjutor. É curioso notarmos que o primeiro penitente que se lhe prostrou aos pés foi o seu próprio confessor, o P. Balley em pessoa.

O primeiro acto ministerial do P. Vianney data de 27 de Agosto de 1815 – um baptizado. Desde que souberam que ele estava “aprovado” pela Cúria Arquiepiscopal, o seu confessionário foi assediado pelos doentes espirituais que não procuravam outro. Isto roubava-lhe muito tempo, fazendo-o negligenciar as próprias refeições.

Na catequese, explicava cuidadosamente o catecismo, tornando-se pequeno com os pequenos. No púlpito de Ecully era breve mas claro, não receando dizer as verdades mais duras e fustigar certos vícios. Pregava a pureza dos costumes e a perfeição da vida cristã. O P. Vianney era o primeiro a dar o exemplo. Era muito simples e muito franco. Orava e mortificava-se para dominar o mal, o pecado. Os seus recursos pessoais passaram para as mãos dos pobres, dava tudo o que tinha.

Deus, porém, não colocara o P. Vianney em Ecully somente para exercer o ministério paroquial; mandara-o para uma escola de santidade. O P. Balley era um sacerdote muito mortificado. Entre ele e o coadjutor estabeleceu-se logo uma aterradora emulação de austeridade; era, no dizer de um sacerdote da época, “um santo junto a outro santo!” Algum tempo depois, o P. Vianney fez esta humilde declaração: “Terminaria por saber um pouco mais se tivesse a dita de viver sempre com o P. Balley. Ninguém como ele fazia ver até que ponto a alma pode desenvencilhar-se dos sentimentos terrenos e o homem assemelhar-se aos anjos. Para se ter desejo de amar a Deus bastava ouvi-lo dizer: Meu Deus, eu vos amo de todo o coração.”

Estes dois sacerdotes levavam uma vida austera, fazendo refeições muito pobres, usando cilício, a tal ponto de o Vigário Geral afirmar: “Felizes de vós, povo de Ecully, por terdes padres que deste modo fazem penitência por vós!” Levavam uma vida em comum marcada pela amizade que os unia e também pelo elevado grau de piedade e de santidade.

Decorria o ano de 1816 e as primeiras semanas de 1817 quando o P. Balley, não passando dos 65 anos, envelhecido antes do tempo e caminhando para a eternidade, cai no leito devido a uma úlcera na perna, da qual nunca mais sarou. Dali em diante quase não tomou parte no ministério paroquial. Durante esse período cada vez mais penoso, de dia e de noite, substituía-o em quase tudo o abnegado coadjutor. Sofria sem se queixar. A 17 de Dezembro, depois de se ter confessado com o seu filho predilecto e depois de ter recebido a Sagrada Comunhão e a Santa Unção, cheio de méritos adormeceu no Senhor o venerado pastor de Ecully.

Conta-se que, depois de administrada a santa unção, os paroquianos retiraram-se, ficando a sós pároco e coadjutor. O moribundo deu ao P. Vianney os útlimos conselhos e recomendou-se às suas orações. Depois, retirando sob o travesseiro os instrumentos de penitência, murmurou-lhe ao ouvido: “Toma, meu filho, esconde isso; se os encontrarem depois da minha morte, julgarão ter eu expiado suficientemente os meus pecados, deixando-me no purgatório até ao fim do mundo.” As disciplinas e os cilícios do P. Balley, como veremos nos próximos números, não ficaram sem uso. O P. Vianney chorou-o como a um pai.

Pouco depois da morte do P. Balley, os paroquianos de Ecully apresentaram à Cúria de Lião um pedido para que o P. Vianney ficasse como pároco, mas a petição não logrou êxito, pois o interessado não quis aceitar como veio a confirmar mais tarde: “Não teria gostado de ser pároco de Ecully, a paróquia era demasiado importante.” Entretanto, o P. Tripier tomou o lugar do P. Balley, continuando o P. Vianney como coadjutor, mas não por muito tempo.

Em 21 de Janeiro de 1818 ficou vacante uma pequena capelania no departamento de Ains, pois o seu capleão, um jovem sacerdote de 27 anos, acabara de falecer tuberculoso, apenas contando 23 dias de trabalho no sagrado ministério. Ars estava vacante. Era uma aldeia pequena e pobre com 230 habitantes – valeria a pena mandar para lá um sacerdote? Uma intervenção pessoal da castelã do lugar, a menina Ana des Garets, que se empenhava em considerar a sua aldeia como uma verdadeira paróquia, apressou os Vigários Gerais a decidirem-se.

Nos princípios de Fevereiro, o P. João Maria Vianney, coadjutor de Ecully, foi avisado que a capela e a aldeia de Ars estavam confiadas ao seu zelo. Foi ter com Mons. Courbon que, ao assinar a provisão, lhe disse: “Não há muito amor de Deus naquela paróquia. Vossa Reverência procurará introduzi-lo.”

Em 3 de Fevereiro de 1818, o P. Vianney escreveu em Ecully o último acto do seu ministério. No dia 9, pela manhã, pôs-se a caminho de Ars.


Arnaldo Vareiro

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Ensina-nos o segredo, Ir. Fernanda!

Quando alguém escreve está a “defender a solidão em que está” (María Zambrano); é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável. Escrever é o contrário de falar; fala-se por necessidade momentânea imediata, fazêmo-nos prisioneiros do que pronunciámos, enquanto que no escrever se acha libertação e perdurabilidade. As grandes verdades não costumam dizer-se a falar. A verdade do que se passa no secreto seio do tempo é o silêncio das vidas, e que não pode dizer-se! A vida, a nossa vida, não se diz, escreve-se! A morte, essa sim, diz a vida; desvela o segredo da vida!

Faz hoje, 5 de Janeiro, um ano que a morte desvendou-me e contou-me um segredo: a vida da Ir. Maria Fernanda Sousa Fernandes! É impossível reduzi-lo a este espaço, mas não o poderei calar jamais porque algo me compele e a ordem que me é dada vem de fora. E o segredo tem duas faces: uma vida da música do coração e uma vida com o Amor no coração.

Grande era a paixão da Ir. Fernanda pela música, que lhe brotava com leveza do seu simples e grande coração, esse “espaço vital”, que vibra com os acordes doces da alegria, da bondade, da ternura, da simplicidade, da amizade. Todos eles compuseram essa sinfonia que durante 37 anos ressoou no coração daqueles que privaram com a Ir. Fernanda: a família, os amigos, os seus alunos, os membros da Obra do Amor Divino e tantos que com ela se cruzaram. Ela sabia que “o coração é a víscera mais nobre porque leva consigo a imagem de um espaço, de um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas ocasiões se abre” (María Zambrano). Este abrir-se é a sua maior nobreza, é o sinal da mais pura generosidade; torna-se activo, torna-se interioridade aberta, que arrasta todo o ser para esta dinâmica de pura vibração, de vida. Vida é esta incapacidade de um órgão desligar-se de outro, um elemento de outro.

O coração da Ir. Fernanda continua vivo porque passivo e dependente do Amor de Deus. Aos 34 anos de vida, ela quis, na Obra do Amor Divino, que o seu profundo fosse um espaço diferente, um espaço criado pela acção de algo não feito para estar no espaço e que o cria para que alguém que vive no espaço e anda por ele possa contactá-lo. O profundo é uma chamada amorosa. O coração é esse trabalhador constante do “conhece-te a ti mesmo” (Sócrates) diante do Deus Amor.

Foi no dia 6 de Agosto de 2007, Festa da Transfiguração do Senhor, que a Ir. Fernanda quis montar a “sua tenda” com Cristo, sabendo que a Glória pedia o caminho da cruz. Os últimos dias da sua vida foi um autêntico caminho de dor, mas uma dor co-redentora porque unida à paixão de Cristo. Que belo segredo nos contou a vida, sobretudo da doença, da Ir. Fernanda: transportar a dor com sentido e no Sentido! Como encarnou e enraizou no seu coração a espiritualidade da Obra do Amor Divino: oferecer-se continuamente no altar da vida quotidiana, amando a Deus e os irmãos!

Trazia de tal modo Deus no coração, que “estou de que nem a morte... a separou do amor de Deus (Rom, 38-39). Deus a acompanhou na morte, notada pela serenidade e total passividade n'Ele que no seu rosto transparecia. “Senhor, nas tuas mãos entrego a minha vida, o meu ser, a minha pessoa.” Foi com esta confiança que a Ir. Fernanda atravessou esta última porta e foi acolhida pelo Deus amor, criador amoroso. Deus fechou por ela a porta da vida terrena e da morte ao abrir os seus braços para acolher o seu ser para a ressurreição, para a comunhão dos bem-aventurados, porque a sua vida foi uma permanente configuração ao amor de Deus.

Hoje, às 17 horas, na igreja paroquial de Travassos (Póvoa de Lanhoso) nos reuniremos como assembleia de irmãos que creem no Deus que salva por amor para Lhe darmos graças por nos ter contado este terno e belo segredo que foi a tua vida, que foste tu!

Um dia nos encontraremos contigo e, em Cristo, viveremos a grande festa da Ressurreição; até lá, ensina-nos a fazer da nossa vida uma suave melodia para Deus e para os irmãos!


Arnaldo Vareiro

(Publicado no jornal "Diário do Minho" em 5.1.2010)