sexta-feira, 28 de agosto de 2009

NÃO NOS FIXEMOS A TRADIÇÕES HUMANAS

1. Não sabemos quando nem onde ocorreu o confronto. Ao evangelista somente interessa-lhe evocar a atmosfera na qual se move Jesus, rodeado de mestres da lei, observantes escrupulosos das tradições, que resistem cegamente à novidade que o Profeta do amor quer introduzir nas suas vidas.

2. Os fariseus observam indignados que os seus discípulos comem com mãos impuras. Não podem tolerar: "Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos?" Falando dos discípulos, o ataque vai dirigido a Jesus. Têm razão. É Jesus quem está rompendo essa obediência cega às tradições ao criar à Sua volta um "espaço de liberdade" onde o decisivo é o amor.

3. Aquele grupo de mestres religiosos não entendem nada do reino de Deus que Jesus lhes está anunciando. No seu coração não reina Deus! Continua a reinar a lei, as normas, os usos e os costumes marcados pelas tradições. Para eles o importante é observar o estabelecido pelos "antigos". Não pensam no bem das pessoas. Não os preocupa "buscar o reino de Deus e sua justiça".

4. O erro é grave. Por isso, Jesus responde com palavras duras: "Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens?"

5. Os doutores falam com veneração da "tradição dos antigos" e atribuem-lhe autoridade divina. Mas Jesus qualifica-a de "tradição humana". Não há que confundir jamais a vontade de Deus com o que é fruto dos homens.

6. Seria também hoje um grave erro que a Igreja ficasse prisioneira das tradições dos nossos antepassados, quanto tudo nos está chamando a uma conversão profunda a Jesus Cristo, nosso único Mestre e Senhor. O que primeiramente nos deve preocupar não é conservar intacto o passado, mas tornar possível o nascimento de uma Igreja e de comunidades cristãs capazes de reproduzir com fidelidade o Evangelho e actualizar o projecto do reino de Deus na sociedade contemporânea.

7. A nossa responsabilidade não é repetir o passado, mas tornar possível nos nossos dias o acolhimento de Jesus Cristo, sem ocultá-lo nem obscurecê-lo com tradições humanas, por muito veneráveis que nos possam parecer.

Arnaldo Vareiro

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A DIMENSÃO HISTÓRICA DO SACERDÓCIO


Ser padre é uma questão de há dois mil anos, mas ao longo dos séculos não se pôs do mesmo modo. Daí que, neste mês, iremos olhar, ainda que de forma resumida, para a perspectiva histórica do sacerdócio, isto é, como é que ele foi encarnado, vivido, entendido face às várias realidades sócio-culturais. De tão larga história escolhemos momentos, figuras e documentos mais marcantes, com a vontade de manter viva a memória viva do Povo de Deus, povo sacerdotal. Cada momento histórico foi desvelando traços da figura modelar de Cristo, único Sacerdote e Bom Pastor. Iremos resumir este percurso histórico em cinco estilos de vida: vida presbiteral, vida apostólica, vida clerical, vida sacerdotal e vida pastoral.

I. Vida presbiteral (séculos I-III)

Ao longo dos três primeiros séculos, o presbítero aparece inserido no presbitério, ao serviço da comunidade presidida pelo bispo e animada pelo Espírito Santo. O presbítero é concebido à imagem de Jesus Cristo, que é sacerdote sendo Bom-Pastor. É nesta linha do seguimento de Cristo Bom-Pastor que Policarpo de Esmirna recomenda: «os presbíteros hão-de ter entranhas de misericórdia, ser compassivos para com todos», caritativos, não apegados ao dinheiro, zelosos do bem, como os Apóstolos (Ad Philip. 6, 1).
No presbitério, o Bispo ocupava o lugar de Cristo ou o lugar de Deus. Os presbíteros ocupavam o lugar dos Apóstolos à volta de Cristo. Todos eram construtores da unidade eclesial. O presbítero servia a unidade com o bispo, com os outros presbíteros e com a comunidade eclesial. É esse o sentir das cartas de Santo Inácio de Antioquia, do princípio do século II. Vai-se tomando consciência de que o presbítero recebe o Espírito como carisma de conselho, para ajudar o bispo no governo, como colaborador e membro do presbitério.

II. Vida apostólica (séculos IV-VIII)

Entre os séculos IV e VIII produzem-se muitos escritos teológicos, nos quais os presbíteros são contemplados. Sublinha-se um estilo de “vida apostólica”. Surgem grandes figuras da Igreja com os seus tratados sacerdotais. São várias as que poderíamos elencar, mas destacamos apenas três. Assim, Gregório de Nazianzo (+390) realça que o modelo do serviço pastoral é o do Bom Pastor e de S. Paulo e considera que a arte das artes é “reger homens”.
A S. João Crisóstomo (344-407), bispo de Constantinopola, se deve o mais amplo tratado da Antiguidade sobre temas do sacerdócio, que se aplica tanto ao bispo como ao padre. Sublinha a dignidade da missão do padre e atribui-lhe, como ministério: a palavra, o sacrifício e o pastoreio. Para Crisóstomo o pastor é pai porque edifica a Igreja e faz nascer novos membros do Corpo místico. Para um ministério adequado aconselha o estudo, ao serviço da pregação e o conhecimento do povo.
Outra grande figura deste período é Santo Agostinho, para quem pregar o Evangelho à comunidade implica uma exigência de santidade. O estilo que o Bispo de Hipona viveu e semeou pautou-se por um serviço eclesial que nasce do amor. É uma presidência que procura o bem dos outros, como Bom Pastor. É atitude de serviço da Palavra e dos Sacramentos, como prolongamento do serviço de Cristo sacerdote, mediador e Bom pastor. O modelo agostiniano exprime o valor complexivo do ser padre e bispo em três articulações essenciais:
1. O bispo é cristão entre os cristãos e com os cristãos;
2. O bispo “preside”, mas o seu presidir é um ir à frente, típico de Bom-Pastor, que dá a vida pelo rebanho;
3. O bispo justifica-se a si próprio em nome desta “caridade” para com a Igreja e antes de tudo para com Cristo que o chama a segui-l’O “assim”, o convida à renúncia e à contemplação.

III. Vida clerical (séculos IX-XVI)

No começo da Idade Média, a figura do presbítero perde espírito de vida apostólica. Apesar de alguns presbíteros o continuarem a viver, acentua-se a dimensão clerical. Os concílios deste período foram estabelecendo as directrizes para a vida clerical, impedindo o crescimento da “secularização”. Decalcou-se a separação entre bispo e presbitério como hierarquia; nesta hierarquia, o bispo representa o primeiro nível, o vértice. Mais do que entre cristãos, o bispo está acima e antes. É o mediador e o intermediário.
Na Idade Média assiste-se a altos e baixos de “secularização” e de reforma. A regra de Santo Agostinho polarizou a corrente da vida apostólica, como reacção ao fenómeno da secularização. Muitas novas ordens religiosas se inspiraram no modelo agostiniano. Há dificuldade em separar os campos entre vida monacal (vida no mosteiro segundo uma Regra) e vida no presbitério. Há intercâmbio ou interacção. As comunidades de clérigos surgidas optam por oração do ofício, estudo e ensino.
As novas ordens, conservadoras do modelo agostiniano, foram-se, aos poucos, marginalizando dos presbitérios e da autoridade dos bispos, uma vez que ultrapassavam os limites da diocese. Daí a distinção entre seculares e regulares (estes podiam ser clérigos do presbitério, isto é, cónegos, ou pertencer a uma nova ordem).
A vida “canónica” decaiu no século X quando os bispos permitiram a cada presbítero viver por sua conta (fora da casa e da vida em comum), ainda que ligado ou incardinado na Igreja (diocese). Esta forma de vida tornou-se regra geral.
A reforma gregoriana quis retomar a vida em comum e a pobreza para os presbíteros; assim o prescrevia o Concílio de Roma de 1059. Duas figuras se notabilizam neste esforço por salvar a vida apostólica: S. Pedro Damião (1072) e S. Norberto (1124). O primeiro notabilizou-se pela difusão da vida em comum e pela luta contra a decadência do estado clerical. Para ele, a acção pastoral e a relação com o dom de Cristo na cruz, vivido na eucaristia, são os motivos da santidade do padre.
Apesar destes esforços, torna-se maior a cisão entre clero secular e clero regular. O clero chamado “secular” quer viver a vida canónica sem ficar enquadrado por uma regra; os cónegos eram clérigos que queriam viver esta vida de pobreza e disponibilidade apostólica, segundo os cânones, ou seja, segundo uma regra.
A época escolástica desenvolve uma reflexão teológica sobre o carácter do padre em si mesmo, que marcou os séculos XII e XIII e que teve como principal inspirador Pedro Lombardo, esquecendo quase a relação com o Presbitério, com o seu bispo e com a sua comunidade eclesial concreta. Acentua-se a acção do padre como instrumento da graça e participação na mediação de Cristo.
É no século XII que se desenvolvem as ordenações desligadas das dioceses (o abade do mosteiro ordenava os seus monges), as missas solitárias, os tratados dos sacramentos. Cada vez mais o sacerdócio é definido em relação à Eucaristia. Os grandes escolásticos do século XIII tomam consciência da novidade do sacerdócio do Novo Testamento em relação ao Antigo. Definem-no referindo-o à Eucaristia.
Neste período foram dados os primeiros passos para uma formação sacerdotal organizada. À volta das catedrais e dos mosteiros foram nascendo “escolas”, prevalentemente de formação clerical. Apesar deste esforço a vida clerical decaiu e esta decadência dos séculos XIV e XV preparará os séculos seguintes.

IV. Vida sacerdotal (séculos XVI-XVIII)

Na época de Trento, ressurgem a Teologia e a Espiritualidade presbiteral. Abrem-se perspectivas missionárias e caminhos místicos. Aparecem agrupamentos de clérigos (regulares) e escolas de espiritualidade sacerdotal.
O Concílio de Trento não quis criar um modelo ideal de vida sacerdotal. Só pretendeu criticar os erros luteranos acerca do sacerdócio. A lógica anti-luterana era clara: há um único sacrifício de Cristo. Este é tornado visível na Igreja. Ora, uma vez que há uma ligação querida por Deus entre o sacerdócio e o sacrifício, também deverá existir um sacerdócio visível e externo: é o dos padres. Não pondo de lado a doutrina do sacerdócio comum dos fiéis, usando sistematicamente a palavra sacerdotes para designar os presbíteros, o Concílio criou uma grande confusão de vocabulário. Quis defender o sacerdócio dos padres e desvalorizou o sacerdócio do Povo. Trento valoriza a relação sacerdócio-eucaristia-perdão dos pecados. Acentua a formação sacerdotal, a santidade, a cura pastoral e a pregação da Palavra. Apareceram os Seminários e as escolas de espiritualidade. Superaram-se muitas desordens clericais. Acentuou-se a vida pastoral e espiritual dos padres.
Nesta época é sublinhada a tese de Cristo sacerdote; o sacerdócio ministerial é uma participação no sacerdócio de Cristo. A função primária do sacerdote é a de prestar culto a Deus através da celebração da Eucaristia, cume do culto.

V. Vida pastoral (séculos XIX-XX)

Muitas figuras enchem estes dois séculos como os fundadores de movimentos e organizações de padres e de missões. Multiplicam-se os escritos sobre o sacerdócio. Fomentou-se, no século XIX, uma religiosidade mais “encarnada”, menos intelectual, mais emotiva, mais orientada para formas sensíveis e concretas.
Os modelos de vida presbiteral são polifacetados. Basta recordar: Jean-Marie Vianney, Santo Cura de Ars, patrono dos párocos; Antoine Chévrier, fundador da Associação Sacerdotal do Prado; Cardeal Mercier (1851-1926), um dos principais iniciadores da promoção do clero diocesano.
Após o II Concílio Ecuménico do Vaticano, o presbítero entende-se na Igreja sacramento de comunhão. A ideia teológica base da doutrina conciliar sobre o padre é a Igreja “sacramento”. Cada cristão é um sinal da pessoa de Cristo, segundo o carisma recebido. O padre é sinal pessoal de Cristo Bom Pastor (PO, 2). A sua função é dar corpo no tempo e no lugar à Palavra, ao sacrifício, à acção salvífica e pastoral do Senhor (PO, 4-6). O estilo presbiteral está nesta linha de «ascese própria do pastor de almas» (PO, 13). Aqui se situa o serviço de Cristo Cabeça do rebanho, pelo exercício de uma chefia pastoral.
Se o padre é instrumento vivo de Cristo Sacerdote, é máximo testemunho de amor (PO, 11). A espiritualidade do presbítero é caridade do Bom Pastor. Acentua-se uma espiritualidade de serviço.
O padre sentiu e sente a dúvida sobre o seu estilo numa sociedade diversa, sobre a sua natureza, identidade e razão de ser numa sociedade de valores plurais.
O II Concílio do Vaticano deu carácter mais preciso à função específica dos padres, coligando o seu ministério com a Ordem Episcopal, em orgânico exercício. O padre participa da autoridade mediante a qual Cristo constrói, santifica e governa a Igreja. É uma autoridade ministerial. Pela ordenação, os padres são assinalados e configurados.
Na prática consequente ao Concílio de Trento, o conteúdo da missão era limitado ao poder propriamente sacerdotal, cultual sobre a Eucaristia. Ser padre era dizer missa. Para o II Concílio do Vaticano, o conteúdo do ministério presbiteral é muito mais amplo: trata-se de uma obra de evangelização. O padre é padre enquanto ministro do Evangelho entre os pagãos, ministro de incorporação da Igreja, ministro da celebração eucarística. O Concílio sublinha que toda a actividade do padre deve ser teocêntrica: o padre não deve agir senão para glória de Deus!

Esta breve memória histórica que fizemos é provocadora, porque cada momento histórico foi desvelando traços da figura modelar de Cristo, único Sacerdote e Bom Pastor. Há valores permanentes. Há novos problemas. Há diferentes graças em situações históricas novas. Tantos foram os que, durante estes vinte séculos, mantiveram vivo o pastoreio de Cristo, pela forma lúcida como se abriram à Graça!

Arnaldo Vareiro

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

ATRACÇÃO POR JESUS (Jo 6, 41-51)

1. O evangelista João utiliza muitas expressões e imagens fortes para gravar bem fundo nas comunidades cristãs a necessidade que têm de aproximar-se de Jesus para descobrir n'Ele a fonte de vida nova. Um princípio vital que não é comparável a nada que tenham podido conhecer anteriormente.
2. Jesus é "pão descido do céu". Não deve confundido com qualquer fonte de vida. Em Jesus Cristo podemos alimentar-nos de uma força, de uma luz, de uma esperança, de um alimento vital... que brotam do mistério mesmo de Deus, o Criador da vida. Jesus é o "pão da vida".
3. Precisamente por isso, não é possível encontrar-se com Ele de qualquer maneira. Temos de ir ao mais fundo de nós mesmos, abrirmo-nos a Deus e "escutar o que nos diz o Pai." Ninguém pode sentir verdadeira atracção por Jesus se "o Pai que O enviou não o atrai".
4. O mais atractivo de Jesus é a sua capacidade de dar vida. O que crê em Jesus Cristo e sabe entrar em contacto com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, uma vida que, de alguma maneira, pertence já ao mundo de Deus. João atreve-se a dizer que "o que comer deste pão, viverá para sempre."
5. Se, nas nossas comunidades cristãs, não nos alimentamos do contacto com Jesus, continuaremos a ignorar o essencial e decisivo do cristianismo. Por isso, nada há pastoralmente mais urgente que cuidar bem a nossa relação com Jesus, o Cristo.
6. Se, na Igreja, não nos sentimos atraídos por esse Deus encarnado num homem tão humano, próximo e cordial, ninguém nos arrancará do estado de mediocridade em que vivemos no quotidiano. Ninguém nos estimulará a caminhar mais ligeiros que o estabelecido pelas nossas instituições. Ninguém nos alentará para ir mais adiante que o que nos marcam as nossas tradições.
7. Se Jesus não nos alimenta com o Seu Espírito de criatividade, continuaremos agarrados no passado, vivendo a nossa religião a partir de formas, concepções e sensibilidades nascidas e desenvolvidas noutras épocas e para outros tempos que não são os nossos. Se assim acontece, Jesus não poderá contar com a nossa cooperação para gerar e alimentar a fé no coração dos homens e mulheres de hoje.
Arnaldo Vareiro