quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Para o fim de ano
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Maria, mulher rodeada pelo amor redentor e santificador de Deus
Celebrar a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria é fazer memória do ano de 1854, quando o Papa Pio IX proclamou, na Bula Ineffabilis Deus, o dogma da Imaculada Conceição, declarando-o solenemente: “(...) pronunciamos e definimos que a doutrina que sustenta que a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada imune de toda a mancha de pecado original no primeiro instante da sua concepção, por singular graça e privilégio de Deus omnipotente, em atenção aos méritos de Jesus Cristo Salvador do género humano, está revelada por Deus; e, por conseguinte, há de ser acreditada firme e constantemente por todos os fiéis”.
Nesta proclamação destacam-se dois aspectos: o da eleição eterna de Maria para Mãe do Filho Unigénito de Deus e o amor divino de predilecção que a cumulou de graça, que é a plenitude da inocência e santidade.
A santidade em Maria é isenção do pecado original e é comunhão esponsal com Deus. Maria possui os dons de Deus, desde o começo, de maneira incomparável. É Deus o início de todo o ser espiritual, é Ele quem rodeia a vida do Homem com um amor redentor, com uma fidelidade amorosa. Em Maria não é compatível o pecado com a sua santidade. Ela é a beleza imaculada, a Igreja santa virgem e mãe, a concretização pessoal da Igreja.
Entre o Antigo e o Novo Testamentos há uma relação de promessa-realização. Em Maria, a Antiga e a Nova Alianças são uma só realidade na sua resposta a Deus, uma resposta pura. Em Maria falta a oposição entre o ser de Deus e o não ser do homem. Ela é a toda entregue a Deus!
Maria é toda bela, isenta do pecado original. O que é o pecado original? É a recusa da graça, é a orientação para o mal, é a orientação para o pecado em vez da graça. É uma necessidade inevitável de pecar. É não viver no dinamismo da graça; se o Homem vivesse o dinamismo da graça desenvolveria as suas capacidades em comunhão com Deus.
O dogma da Imaculada destaca, em Maria, a capacidade radical de diálogo com Deus. Deus concedeu-lhe o privilégio de ser imaculada em vista de uma vida santa, confirmada pela missão de Maria na História da Salvação: ser a Mãe de Seu Filho, a própria Santidade! Maria começa a existir numa situação de tal proximidade com Jesus que é livre de toda a determinação no mal.
A Humanidade reencontra, em Maria, a possibilidade de prosseguir a marcha radical projectada por Deus no seu desígnio eterno de salvação. Nós, cada um de nós, somos membros desta Humanidade e dentro de cada um de nós há uma realidade transcendente que não pode ser contaminada. O divino, Deus, habita em nós. Maria é exemplo desta habitação de Deus e, por isso, devemos alegrar-mo-nos por um ser humano nos poder ensinar o caminho do divino, da plenitude que há em nós.
Deus deu-se-nos totalmente. Celebrar Maria é descobrir nela o que descobrimos em Jesus: a absoluta presença de Deus num ser humano. Em Maria, descobrimos que Deus é encarnação. Ela é Imaculada porque Deus está nela e este é o dom que Deus concede a todos os seres. Deus actua sempre em nós por pura graça, antes de o merecermos.
O tempo de Natal que vivemos convida-nos a sentir e a experimentar mais intensamente esta presença de Deus. Maria soube ser tabernáculo, soube acolher Deus! É tempo de, com a Senhora Imaculada do Sameiro, rodeada pelo amor redentor e santificador de Deus, descobrir a “pérola” preciosa que está dentro de nós. A Senhora diz-nos: “Deus está em ti, Deus faz (é) parte de ti, que não deves nem podes ofuscar!” Se fizermos esta redescoberta todo o nosso ser será luz!
A Senhora do Sameiro nos ajude a sermos “arcas de Deus”, que transportam Deus, a Luz, para o nosso mundo, para o nosso país, para os que vivem à nossa volta envoltos em trevas e que, aos pés da Mãe, suplicam: “Ó Senhora Imaculada, ajoelhados a teus pés, confiamos mais uma vez!”
Arnaldo Vareiro
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
INTRODUÇÃO À DEI VERBUM
Propósito do Ano Pastoral
No ano pastoral 2009-2010 seremos conduzidos pela mesma Palavra para a acolher e viver. «Acolhemos a Palavra» é o lema que nos acompanhará suscitando outras iniciativas. Importa que o acolher se oriente para o viver. Não pretendemos saborear egoisticamente um dom oferecido. Sabemos que tudo se projecta na vida e que o mundo necessita de ler a Palavra divina no quotidiano dos nossos pensamentos e acções. […] Este ano, temos como instrumento de trabalho essencial a Constituição Dogmática “Dei Verbum”, um precioso documento introdutório para a leitura e escuta orante da Palavra de Deus.
Introdução
O Mundo da Palavra Humana
“Deus falou na Sagrada Escritura por meio de homens e de maneira humana” (DV 12).
A história da Bíblia é história da Palavra de Deus aos homens. O AT e o NT descrevem-nos o itinerário da Palavra de Deus, a qual: cria o mundo (Gn 1), chama Abraão (Gn 12, 1ss), é dirigida aos profetas de Israel (Os 1,1; Jr 1,2 etc); assume o rosto de homem em Jesus de Nazaré (Jo 1, 1-14), “difunde-se, cresce e afirma-se com força” com a dilatação da Igreja apostólica (Act 6,7; 12,24; 19,20), regula o fim do universo e o início do novo mundo (Ap 19, 11-16; 21,1ss).
Ela é-nos sempre dada pela mediação humana.
Nisto manifestou-se a “admirável condescência de Deus e a sua inefável benignidade”: Com efeito, as palavras de Deus, expressas em línguas humanas, tornaram-se semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do Eterno Pai, tomando a carne da fraqueza humana, se tornou semelhante aos homens” (DV 13)
Falando na linguagem dos homens, Deus ama-os e comunica-Se com eles, restituindo à linguagem humana a sua vericidade.
“Homo loquens”
Homem como animal que fala. A palavra introduz-nos no mundo humano. Falar, dar um nome, é de certa forma chamar à existência, tirar do nada.
O Adão bíblico penetra o ser de cada animal para dar-lhe um nome (cf. Gn 2, 19-20). A imposição do nome é um “acto da actividade ordenadora com a qual o homem se apodera espiritualmente das criaturas, objectivando-as diante de si”1.
Através da palavra, o homem passa a morar em si mesmo e de certa forma apropria-se de si. Ele procura a sua “autocompreensão”. Ele tem necessidade da disciplina da palavra para compreender-se e exprimir-se > mistério do ser-homem. A Palavra possibilita-lhe a comunicação com o outro. A palavra humana deveria exprimir uma “meta-física” das relações. Se as palavras não reflectirem e não colocarem em acção a dinamicidade criativa da relação, se as palavras não forem continuamente retomadas e actualizadas, elas estarão destinadas a degradar-se.
3. As três funções da Palavra
3.1. A palavra é “informação”
A palavra informa sobre factos, acontecimentos, coisas, geralmente enpregando um verbo no indicativo e na terceira pessoa. A linguagem das ciências exactas tem um formulário técnico e rigoroso. Na linguagem da didáctica prevalece a informação objectiva, mas todo o docente sabe muito bem que não pode prescindir daquela dimensão “formativa”. Na historiografia, o narrar não pode esgotar-se na simples apresentação dos factos, mas deverá ter uma certa dose subjectiva positiva: a palavra, que dá vida ao facto narrado, é “sua” (expressão) e convoca o leitor (apelo).
3.2. A palavra é “expressão”
Todo o homem que fala exprime-se, diz alguma coisa de si mesmo. Para comunicar-se e “informar”, o Homem deve, em certa medida, exprimir-se, ou seja, pôr em movimento o seu ser, correr o risco de saída de si, dispondo-se a um desmascaramento mínimo de sua interioridade (ex.: Abraão – sai de ti, vai para ti).
3.3. A palavra é “apelo”
A palavra humana, por sua natureza, busca o outro, tem paixão pelo outro, porque o homem é “relação”. Mais uma vez, o Adão bíblico é emblemático. Vejamos (Gn 2, 18). Adão dá um nome aos animais, mas não fala aos animais; ele busca um “tu”capaz de compreender e acolher a exigência interior de dar-se livremente. Vive para o encontro e a comunicação. Vive de encontro e comunicação. A palavra é o traço-de-união entre o “eu” e o “tu”, princípio original de toda a comunhão renovada.
4. A Palavra é criativa
A palavra, directa ou indirectamente, é sempre “apelo” a outro e exige, por sua natureza, uma resposta. A palavra não poderá deixar de provocar uma livre ressonância no “tu” que é intimamente tocado.
A palavra dá a cada um a revelação de si na relação recíproca com o outro. O homem faz-se “eu” no diálogo com um “tu”. Toda a palavra, proferida ou ouvida, tem a possibilidade de despertar. Na reciprocidade do “eu” e do “tu”, a palavra tende a criar a unidade do “nós”.
5. A linguagem da amizade e do amor
No encontro de amizade com o outro, o amigo não teme realizar o tremendo trabalho de libertar o sentido secreto do seu ser. E, depois de ter comunicado livremente o seu eu e de tê-lo oferecido ao livre acolhimento do outro, o amigo pode recomeçar o itinerário nunca definitvo da descoberta de si e do outro. Meias-palavras, alusões, silêncios, olhares, podem dizer muito mais do que muitas palavras exactíssimas.
Na palavra da amizade e do amor, “cada qual dá ao outro a hospitilidade essencial, o melhor de si”. Santo Agostinho diz: “Se não temos, nenhuma coisa neste mundo nos parecerá amável.”
O “eu” e o “tu”, tornados “nós na amizade, tocam o invisível e intocável “Tu” divino. Vejamos a experiência de Agostinho e sua mãe Mónica, evocada nas Confissões:
“Ao aproximar-se do dia em que devia sair desta vida, dia conhecido a Ti, desconhecido a nós, aconteceu, por obra Tua, creio, segundo os Teus misteriosos desígnios, que nos encontrássemos ela e eu sozinhos, apoiados numa janela que dava para o jardim da casa que nos hospedava, lá junto a Ostia Tiberina, longe dos rumores da multidão, procurando restaurar-nos da fadiga de uma longa viagem e tendo em vista a travessia do mar. conversávamos, pois, sozinhos com grande doçura (...). buscávamos entre nós a presença da Verdade, que és Tu, procurando entender qual seria a vida eterna dos santos (...). Abrimos avidamente a boca do coração ao jacto supremo da tua fonte, a fonte da vida (...). Elevando-nos com o mais ardente ímpeto de amor para o próprio Ser, percorremos todas as coisas corpóreas e o próprio céu (...). E ainda subindo acima de nós mesmos com a consideração, a exaltação, admiração das Tuas obras, chegamos às nossas almas e superamos também estas para alcançar a região da abundância inexaurível, onde apascentas Israel para sempre com a pastagem da verdade, e onde a vida é a Sabedoria (...). E enquanto falávamos dela e nos sentíamos atraídos por ela, pudemos captá-la um pouco com o ímpeto total da mente, e suspirando deixamos ali presas as primícias do espírito, para tornar a descer depois ao som vazio das nossas bocas, onde a palavra tem princípio e fim”2.
6. A Palavra amiga de Deus
A DV do II Concílio do Vaticano fala nestes termos da Revelação: “Em virtude desta Revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como a amigos e conversa com eles para os convidar e admitir a participarem da Sua própria vida.” (DV 2).
A Revelação de Deus é descrita com a categoria da palavra, mais ainda, do diálogo amigável. Para revelar-se, Deus falou aos homens e usou a linguagem humana da amizade com uma finalidade precisa que é a comunhão de vida.
7. A “Dei Verbum”, pórtico da Bíblia
Esta constituição foi promulgada oficialmente pelo Papa Paulo VI a 18 de Novembro de 1965. Esta constituição é logicamente o primeiro dos grandes documentos do Vaticano II.
Hoje, vamos ler a analisar o proémio (prólogo), quem na realidade introduz no conjunto da obra conciliar.
1. O sagrado Concílio, ouvindo com devoção a Palavra de Deus e proclamando-a desassombradamente, faz suas as palavras de S. João, quando diz: “anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós; o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com Seu Filho, Jesus Cristo” (1 Jo 1, 2-3). Por isso, seguindo as pisadas dos Concílios de Trento e Vaticano I, propõe-se expor a genuína doutrina sobre a Revelação Divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo a mensagem da salvação, acredite; acreditando, espere; esperando, ame.
Dei Verbum. Estas duas palavras expressam na realidade todo o conteúdo. Deus, o Deus vivente, falou à humanidade. O termo “palavra de Deus” aplica-se primariamente à revelação, a esta primeira intervenção pela qual Deus sai do seu mistério, dirige-se à humanidade para desvelar-lhe os segredos da vida divina e comunicar-lhe o seu desígnio salvífico. Este é o feito, a acção que domina os dois testamentos e do qual a Igreja vive. Esta palavra de Deus, dirigida uma vez para sempre, perdura através dos séculos, sempre viva e actual, na Tradição e na Escritura.
A atitude da Igreja: escuta e proclama a palavra de Deus. Com fé, recebe a palavra do Senhor e, em virtude da sua missão profética que recebeu de Cristo, a proclama.
Este texto enuncia, em termos bíblicos, o essencial da constituição. A vida, que estava no Pai, junto do Pai, foi-nos manifestada. Deus saiu do seu mistério e, por mercê da humanidade de Cristo, João pode ver e ouvir o Verbo de vida. João anuncia o que viu e ouviu, a fim de que os homens, mediante a fé no seu testemunho, participem nesta experiência e, com ele, entrem em comunhão de vida com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo. Epifania de Deus em Jesus Cristo, mediação do testemunho apostólico, a mediação de nós, catequistas, participação do homem na vida trinitária. O texto de João descreve todo o movimento da revelação: a vida em Deus, a vida que baixa até ao homem e, em Jesus Cristo, manifesta-se para levar à comunhão de vida, para tornar à fonte da vida – o Pai.
2. A segunda frase indica a finalidade da constituição. O Concílio propõe-se expôr a verdadeira doutrina acerca da Revelação e da sua transmissão numa linha de continuidade/ruptura.
1 G. Von Rad, Genesi, Paideia, Brescia, 1978, 2ª ed., p. 102.
2S. Agostinho, Confissões, 9, 10, 23-24.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
ATÉ AO SACERDÓCIO!...
Ao longo deste Ano Sacerdotal, tentaremos penetrar na vida e virtudes de S. João Maria Vianney (Santo Cura d' Ars) para que, através do seu testemunho, sigamos as pegadas de Cristo e “tornando-nos conformes com a Sua imagem, em tudo obedecendo à vontade de Deus, nos votemos com toda a coragem à glória de Deus e ao serviço do próximo”, como nos recorda a Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium do II Concílio do Vaticano no número 40. Se fizermos este esforço e empenho, continua a mesma constituição, “a santidade do Povo de Deus dará abundantes frutos, como o demosntra brilhantemente, através da história da Igreja, a vida de tantos santos”. Só nesta dinâmica contínua de santificação pessoal é que terá sentido olharmos para a vida do Santo Cura d'Ars ou de qualquer outro santo; é que terá sentido o Papa desafiar-nos a reflectirmos sobre o sacerdócio comum que todos exercemos desde o dia do nosso Baptismo e sobre o sacerdócio Presbiteral e as implicações que ambos trazem e provocam no e para o nosso mundo.
No mês anterior, olhamos para o patrono dos párocos como o filho que, como é próprio de uma criança, ama e confia somente na Mãe, na da terra e na do céu. No próximo mês de Novembro, desde o dia 8 até ao dia 15, a Igreja convida-nos a olhar para os nossos Seminários através da nossa oração, da nossa partilha material, da nossa reflexão ou até de uma visita a um seminário, sentindo mais de perto esse viveiro no qual Deus vai chamando, suscitando, interpelando, desafiando aqueles que estão em discernimento vocacional. Então, este mês, convido-o a olharmos para o jovem João Maria Vianney como um Sim ao Deus que, por puro e livre Amor, chama para uma missão concreta: santificar-se santificando!
Desde os 20 anos que João Maria, já ávido de atingir a santidade, tinha traçado um plano de penitência e se impusera segui-lo, desejando mortificar-se cada vez mais. Iniciou os estudos de seminarista no presbitério de Ecculy, aqui passava as manhãs e as tardes. Mas tinha muitas dificuldades no que se referia aos estudos, sobretudo na gramática latina, que lhe parecia horrível. Esquecera-se das poucas noções gramaticais que tinha recebido na escola e não era possível empreender o conhecimento da sintaxe latina sem conhecer a sintaxe francesa. Este trabalho parecia-lhe mais duro do que o do campo! Ao chegar a noite, o aluno de 20 anos, à débil luz de uma lamparina, debruçava-se obstinadamente sobre os livros. Depois, numa prece fervorosa, suplicava ao Espírito Santo que lhe gravasse os vocábulos na sua “pobre cabeça”.
Os progressos de João Maria nos estudos foram quase nulos, durante os primeiros meses. Não obstante, estudava com uma tenacidade admirável. A languidez do semblante, devida à parca alimentação, deixava transparecer o enfraquecimento das suas forças. Embora precisasse de alimento para se sustentar, jejuava rigorosamente.
À crise nos estudos veio a juntar-se também uma crise de espírito, levando o jovem João Maria a rever em pensamento o lar e os campos paternos, em cujo cultivo, graças à sua robustez, conseguira êxitos mais fáceis. “Voltarei para casa”, disse com tristeza ao Padre Balley, seu mestre. Com um olhar penetrante, o velho mestre sondou a grande mágoa do querido discípulo. Mas, sabendo que tesouro tinha sido confiado à sua guarda, perguntou-lhe: “Para onde vais, meu pobre filho? Não irás senão aumentar as tuas penas... Bem sabes que teu pai (o pai de João Maria sempre se opôs à sua vocação para o sacerdócio) nada mais deseja do que ter-te a seu lado; e, ao ver-te arrependido e triste nunca mais te deixará voltar. Ah!, então, adeus a todos os teus planos, João Maria! Adeus, sacerdócio! Adeus, almas!...”
O desalento deixou de inquietar o jovem, mas nem por isso a sua memória se tornou menos rebelde. Para comover o céu e obter o auxílio necessário, recorreu explicitamente a um herói. Fez voto de peregrinar a pé, mendigando o pão, tanto à ida como à volta, até ao santuário de Louvesc, e visitar o túmulo de S. Francisco Regis. Era o ano de 1806 durante o Verão. Tinha que percorrer uma boa centena de quilómetros, mas estava resoluto. Pela manhã, após participar na Missa e comungar, partiu levando nas mãos bastão e rosário. Passou inúmeras dificuldades no caminho, mas cumpriu o seu voto. Em Louvesc confessou-se e comungou; estava extenuado, mas feliz. Na confissão foi aconselhado a que, no regresso, desse esmola em vez de pedir. Mais tarde, já sacerdote, recordando-se deste episódio, dizia: “Tive ocasião de experimentar a verdade daquelas palavras da Sagrada Escritura: é melhor do que receber. Nunca aconselharei pessoa alguma a fazer o voto de mendigar”. Depois desta peregrinação, os livros já não lhe causavam tanto pavor e o jovem João Maria começou a encarar o futuro com mais fé.
Durante a Quaresma de 1807, João Maria recebeu o sacramento da Confirmação. Ia completar 21 anos. O jovem Vianney escolheu como patrono da Confirmação o Santo Percursor. Daí em diante começou a assinar indistintamente João Maria Baptista Vianney e João Baptista Maria. Por toda a vida esse segundo padroeiro seria um dos seus santos predilectos!
João Maria Vianney perdera a sua mãe quando dela mais precisava. Ah! Quem o consolaria em tantas tribulações? A primeira confidente da sua vocação, a doce advogada junto do pai irritado, já não exisitia. Entretanto, Mateus Vianney, graças, talvez, às últimas recomendações da moribunda em nada se opôs quanto à continuação dos estudos do seu filho.
No último semestre de 1812, pareceu ao P. Balley que havia chegado o momento de o seu idoso discípulo de 25 anos seguir plano de estudo regulamentar. Exigia-se então dos aspirantes ao sacerdócio um ano de filosofia e dois de teologia. João Maria Vianney foi mandado para o Seminário Maior de Verrièrres, junto a Montbrison. Aquele centro de estudos, fundado em 1803, não era mais do que uma simples escola paroquial como a do P. Balley em Ecully. Era uma casa pobre e simples, que chegou a acolher cerca de 50 alunos. Mas os estudos do jovem João Maria, embora tivessem melhorado um pouco, ainda não surtiam efeitos, continuava a ser um aluno duma fraqueza extrema.
Queria Deus que fosse ele como S. Paulo, um “ignorante da arte de bem dizer”. E se a sua modéstia lhe permitisse falar, haveria de responder aos primeiros da classe, que muitas vezes troçavam das suas respostas aos professores, como o santo poeta italiano, Jacopone de Todi: “Deixo-vos o silogismo, as subtilezas de palavras e os cálculos mais subtis. Deixo-vos a arte, cujo segredo pertence a Aristóteles. Uma inteligência humilde e pura, sozinha, eleva-se à presença de Deus, sem auxílio da Filosofia”.
O nosso seminarista não foi muito feliz em Verrièrres; mal chegou a entender aquela filosofia insípida e fria. Então, nas férias de Verão, o P. Balley, sem perda de tempo, pensou em preparar o seu discípulo para ingressar no Seminário Maior de Lião. Aquelas férias foram, sem dúvida, as melhores – e as últimas – que gozou durante toda a vida.
O Seminário Maior de Santo Ireneu, edificado na praça Croix-Paquet de Lião, depois de ter servido durante a revolução para depósito de armas e hospital militar, voltou no dia 2 de Novembro de 1805 ao seu primitivo destino.
O ano escolar de 1813 a 1814 teve início depois dos tradicionais dias de retiro, pouco antes da festa de Todos os Santos. Um futuro cónego de Belley, P. João Agostinho Pansut, que naquele ano terminava a teologia, mais tarde na sua velhice conservava ainda a lembrança do novato, cuja fisionomia muito o tinha impressionado. Porque, apesar do seu amor ao retiro e ao silêncio, João não podia passar despercebido. Aos 25 anos já tinha o aspecto de um asceta. Diz-nos um testemunho: “O recolhimento, a modéstia, a abnegação de si mesmo, a penitência levada até à maceração, reflectiam-se em todo o seu exterior. Se todos os 250 seminaristas que viviam em Santo Ireneu fossem outros tantos Vianneys, durante os passeios e recreios, aquela casa seria a imagem fiel dum convento de cartuxos.”
Mas o problema do latim subsistia, pois era a língua oficial das aulas e dos exames! Depois de cinco ou seis meses, os professores, julgando-o incapaz de ir mais adiante com os estudos, o aconselharam a que se retirasse. Estava despedido aquele, diante de cujas relíquias, um dia o Sumo Pontífice, prostrado, sob a cúpula de São Pedro Em Roma, as veneraria e as perfumaria de incenso! Foi essa a prova mais dura de toda a sua vida. Mais tarde vê-lo-emos falar com alegria das suas misérias e contratempos. Jamais, pelo menos enquanto se tem lembrança, fez alusão àquela saída do Seminário Maior.
O que fazer dali em diante? Voltaria para o mundo, ele cujo desejo íntimo era dar-se inteiramente a Deus? Lembrou-se então João Maria dum um dos seus companheiros de infância, João Dumond, que, em 27 de Novembro do ano anterior, tinha recebido o hábito de “Irmão” no noviciado de Lião, do Pequeno Colégio. Na alma do pobre seminarista despedido surgiu um novo plano. Trocaria a sua batina por outra de Irmão, com “quatro mangas”. Sem se entender com o P. Balley, nem pedir-lhe conselhos saiu de Santo Ireneu para bater à porta do Pequeno Colégio, situado perto da igreja primacial de Lião. “Não sei bastante latim para ser sacerdote, disse ao seu amigo João Dumond, agora Irmão Geraldo, virei aqui para ser Irmão.” E foi para a casa paroquial de Ecully, por alguns dias, como pensava. O P. Balley, que o recebeu de braços abertos e sobre cujo peito chorou amargamente, ouviu-lhe as confidências. Depois, tomando a palavra, novamente assegurou ao seu protegido que Deus o tinha escolhido para o serviço do altar. “Escreve, acrescentou o P. Balley, escreve ao teu amigo de Lião que não fale nada e que eu quero que continues os teus estudos.”
Entretanto, aproximava-se o tempo das Ordenações, o exame canónico começava em fins de Maio, e o P. Balley aventurou-se a apresentar o seu discípulo. A diocese estava com falta de sacerdotes. O candidato já ia completar 29 anos. Há três anos que tinha recebido a tonsura. Já era tempo de ao menos receber as Ordens Menores, a não ser que de todo se esvaíssem as esperanças. Forma essas as razões que pareceram suficientes para que o tempo não se prolongasse mais.
No exame, ao ouvir as perguntas em latim embaraçou-se e o que respondeu foi de maneira incompleta... O tribunal examinador ficou perplexo. Todos reconheciam o recto juízo natural e o critério do P. Balley. Haveriam de recusar aquele seminarista de tão boa vontade ou ao menos fazê-lo esperar?
Perante esta situação, o P. Balley dirigiu-se, no dia seguinte, a Lião e recolheu pareceres de sacerdotes que se tinham cruzado com o jovem seminarista. Todos eram unânimes em defende-lo como o mais virtuoso dos seminaristas de Lião. O Pe. Courbon, simples e bondoso, decidiu a sorte no nosso jovem seminarista. Limitou-se a perguntar ao P. Balley:
- “Sabe rezar o Rosário?
- Sim. É um modelo de piedade.
- Um modelo de piedade? - pois bem, eu admito-o. A graça de Deus fará o resto.”
Jamais o P. Courbom foi melhor inspirado.
Por meio da humilhação e do sofrimento, o Escultor divino tinha suficientemente modelado e embelezado aquela alma. Tinha chegado a hora da consagração. O jovem Vianney soube, com reconhecimento infinito, que no dia 2 de Julho, festa da Visitação de Nossa Senhora, receberia de uma só vez as Ordens Menores e o Subdiaconado.
Até fins de Maio de 1815, João Maria, admitido ao Diaconado, entrou novamente para o Seminário. Ali, formou no seu interior uma solidão tranquila de que jamais saiu um só instante. A 23 de Junho, véspera da festa do seu santo protector (S. João Baptista), foi ordenado diácono na igreja primacial de Lião.
Logo depois do diaconado tratou-se de admiti-lo à ordenação sacerdotal. Foi novamente submetido ao exame canónico em Ecully, na presença do Vigário Geral, sobre os pontos mais difíceis da teologia moral, às quais o jovem diácono soube responder com clareza e precisão.
Aos 29 anos, depois de tantas incertezas, de tantos fracassos e de tantas lágrimas, João Maria Vianney via abertas as portas do santuário. Enfim, subia ao altar do Senhor. Desde aquele momento da sua ordenação considerava-se, de corpo e alma, como um vaso sagrado, exclusivamente destinado para o divino ministério. Mais tarde, nas suas catequeses, afirmava: “Oh, o Padre tem alguma coisa de grande! Não se compreenderá bem o sacerdócio senão no céu. Se o compreendêssemos na terra, morreríamos não de espanto, mas de amor!”
No tempo da meninice, quando vivia com a sua santa mãe, tinha dito, um dia, entre suspiros: “Se eu fosse sacerdote, queria salvar muitas almas.” As almas já o aguardavam!
Arnaldo Vareiro
sábado, 10 de outubro de 2009
UMA COISA NOS FALTA (Mc 10, 17-30)
terça-feira, 6 de outubro de 2009
NO COLO DA MÃE
João Maria Vianney veio ao mundo por volta da meia-noite a 8 de Maio de 1786, sendo baptizado neste mesmo dia. Era o quarto de seis irmãos com que Deus tinha abençoado a união de Mateus Vianney e Maria Beluse, casal de uma fé operante e esclarecida. Nas coisas de piedade foi um menino precoce, pois já com 18 meses, quando a família se reunia para a oração da noite, ajoelhava-se por sua própria inicativa entre os demais, juntando as mãozinhas com devoção. A sua mãe desde muito cedo falava-lhe no Menino Jesus, na Santíssima Virgem e no Anjo da Guarda, o que João ia guardando no coração, o qual Deus ia ornando com as suas graças! À medida que crescia em estatura ia crescendo nele também o desejo de saber mais sobre os mistérios de Jesus, ouvindo a mãe a contar a História Sagrada.
O pequeno João era muito alegre e brincalhão quando ia com o pai e os seus irmãos para o campo montados num burrico; era ele quem animava os jogos. Era um rapazinho de olhos azuis, cabelo escuro, tez morena e olhar vivo. Não era, ao que contrariamente se diz, uma criança singular, mas tinha um carácter muito vincado, chegando a ser muitas vezes de temperamento nervoso. Mas, desde cedo, o pequenito foi fazendo um esforço para adquirir a perfeita doçura; bem adivinhava que era esse o caminho que conduzia à santidade!
Desde pequeno nutria um forte e intenso amor às duas mães: à da terra e à do céu! João Maria possuía um lindo rosário, que tinha em grande estima. Gothon, uma das suas irmãs mais novas, achou-o também do seu agrado. Naturalmente qui-lo logo para si. Deu-se uma cena violenta entre irmão e irmã: gritos, empurrões e ameaças de pugilato. O pobre menino, todo amargurado, correu para junto da mãe. “Meu filho, dá o teu rosário à Gothon, - disse-lhe ela com voz branda, mas firme… sim, dá-lho por amor de Deus”. Imediatamente João Maria, soluçando, entregou o rosário, que assim mudou de dono. Para uma criança de quatro anos era um belo sacrifício! A fim de lhe enxugar as lágrimas, a mãe, em vez de carícias e mimos, deu-lhe uma pequena imagem de madeira que representava a Virgem Santíssima. Aquela tosca imagem tinha-a contemplado, muitas vezes, sobre a estufa na cozinha, desejoso de a possuir.
Agora era dele, toda dele! “Oh! Quanto eu amava aquela imagem – dir-nos-á 70 anos mais tarde. Não podia separar-me dela, nem de dia, nem de noite e não dormia tranquilo, sem tê-la na cama a meu lado… A Santíssima Virgem é a minha mais antiga afeição; amei-a mesmo antes de a conhecer”.
Ajoelhava-se com fervor ao toque do Angelus. Às vezes retirava-se para um canto, punha sobre uma cadeira a sua querida imagem e orava diante dela com grande recolhimento. A cada hora que soava persignava-se e rezava uma Avé-Maria.
Embora fosse privilegiado da graça divina, João Maria não deixava de fazer as suas traquinices. Uma tarde, quando contava uns 4 anos, João Maria saiu sem dizer nada a ninguém. A mãe deu pela falta. Chamou-o. Escutou. Nem resposta. Procurou ansiosa, no pátio, atrás dos montes de lenha e de feno. O menino não aparecia. Ele que sempre respondia à primeira chamada!
Enquanto se dirigia ao estábulo, onde se poderia ter escondido, a mãe pensava no poço escuro e profundo em que bebiam os animais.
Mas a quem haveria de descobrir num canto escuro, ajoelhado entre dois animais que ruminavam pachorrentamente? O inocente, que rezava com fervor, de mãos postas, diante da imagem da Virgem. Maria Vianney tomou-o nos braços e apertou-o ao coração. “Oh! Meu filho, tu estavas aqui – disse-lhe ela com voz trémula pelo pranto. Porque te escondeste para rezar? Tu bem sabes que nós rezamos juntos.”
O menino não via outra coisa senão a mágoa causada à mãe. “Perdão, mamã, eu não sabia… não farei mais! – gemia ele abandonando-se nos braços maternos.
Estamos no Mês de Outubro, mês dedicado tradicionalmente à Mãe do Rosário, à Mãe que quer que os seus filhos lhe ofereçam flores através da oração do rosário, revivendo os mistérios do Seu Filho Jesus. Como devemos imitar o pequenito João Maria neste amor e entrega total no colo da Mãe! Ela busca-nos sempre quando nos afastamos para rezar sozinhos, isto é, quando nos fechamos nas nossas angústias, nas situações menos risonhas da vida e pensamos que temos soluções mágicas para tudo; Ela vem-nos buscar quando estamos junto do “poço” da tristeza, do desespero, da infelicidade, da doença, pega-nos ao colo, afaga o nosso rosto, aperta-nos ao coração e coloca-nos de novo no Seu regaço para, nele, sentirmos a ternura e o amor de Deus. É a Mãe que nos ensina a aproximarmo-nos de Deus e a encontrá-Lo!
Mais tarde, quando felicitavam o Cura d’Ars por ter adquirido tão cedo o gosto pela oração e pelo altar, respondia com emoção e lágrimas: “Depois de Deus, devo à minha mãe. Era tão boa! A virtude passa facilmente do coração das mães para o coração dos filhos… Jamais um filho que teve a dita de ter uma boa mãe deveria vê-la, ou pensar nela sem chorar”.
S. João Maria Vianney propõe-nos, neste Ano Sacerdotal e neste Mês de Rosário, a estar mais perto do coração da Mãe para que Ela encha o nosso pobre coração das Suas virtudes, especialmente a da docilidade à Palavra de Deus que vem continuamente ao nosso encontro! Caminha connosco, Mãe!
Arnaldo Vareiro
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
ACOLHER OS PEQUENINOS (Mc 10, 2-16)
sábado, 12 de setembro de 2009
RECONHECER A JESUS, O CRISTO
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
CURAR A NOSSA SURDEZ
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
NÃO NOS FIXEMOS A TRADIÇÕES HUMANAS
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
A DIMENSÃO HISTÓRICA DO SACERDÓCIO
Ser padre é uma questão de há dois mil anos, mas ao longo dos séculos não se pôs do mesmo modo. Daí que, neste mês, iremos olhar, ainda que de forma resumida, para a perspectiva histórica do sacerdócio, isto é, como é que ele foi encarnado, vivido, entendido face às várias realidades sócio-culturais. De tão larga história escolhemos momentos, figuras e documentos mais marcantes, com a vontade de manter viva a memória viva do Povo de Deus, povo sacerdotal. Cada momento histórico foi desvelando traços da figura modelar de Cristo, único Sacerdote e Bom Pastor. Iremos resumir este percurso histórico em cinco estilos de vida: vida presbiteral, vida apostólica, vida clerical, vida sacerdotal e vida pastoral.
I. Vida presbiteral (séculos I-III)
Ao longo dos três primeiros séculos, o presbítero aparece inserido no presbitério, ao serviço da comunidade presidida pelo bispo e animada pelo Espírito Santo. O presbítero é concebido à imagem de Jesus Cristo, que é sacerdote sendo Bom-Pastor. É nesta linha do seguimento de Cristo Bom-Pastor que Policarpo de Esmirna recomenda: «os presbíteros hão-de ter entranhas de misericórdia, ser compassivos para com todos», caritativos, não apegados ao dinheiro, zelosos do bem, como os Apóstolos (Ad Philip. 6, 1).
No presbitério, o Bispo ocupava o lugar de Cristo ou o lugar de Deus. Os presbíteros ocupavam o lugar dos Apóstolos à volta de Cristo. Todos eram construtores da unidade eclesial. O presbítero servia a unidade com o bispo, com os outros presbíteros e com a comunidade eclesial. É esse o sentir das cartas de Santo Inácio de Antioquia, do princípio do século II. Vai-se tomando consciência de que o presbítero recebe o Espírito como carisma de conselho, para ajudar o bispo no governo, como colaborador e membro do presbitério.
II. Vida apostólica (séculos IV-VIII)
Entre os séculos IV e VIII produzem-se muitos escritos teológicos, nos quais os presbíteros são contemplados. Sublinha-se um estilo de “vida apostólica”. Surgem grandes figuras da Igreja com os seus tratados sacerdotais. São várias as que poderíamos elencar, mas destacamos apenas três. Assim, Gregório de Nazianzo (+390) realça que o modelo do serviço pastoral é o do Bom Pastor e de S. Paulo e considera que a arte das artes é “reger homens”.
A S. João Crisóstomo (344-407), bispo de Constantinopola, se deve o mais amplo tratado da Antiguidade sobre temas do sacerdócio, que se aplica tanto ao bispo como ao padre. Sublinha a dignidade da missão do padre e atribui-lhe, como ministério: a palavra, o sacrifício e o pastoreio. Para Crisóstomo o pastor é pai porque edifica a Igreja e faz nascer novos membros do Corpo místico. Para um ministério adequado aconselha o estudo, ao serviço da pregação e o conhecimento do povo.
Outra grande figura deste período é Santo Agostinho, para quem pregar o Evangelho à comunidade implica uma exigência de santidade. O estilo que o Bispo de Hipona viveu e semeou pautou-se por um serviço eclesial que nasce do amor. É uma presidência que procura o bem dos outros, como Bom Pastor. É atitude de serviço da Palavra e dos Sacramentos, como prolongamento do serviço de Cristo sacerdote, mediador e Bom pastor. O modelo agostiniano exprime o valor complexivo do ser padre e bispo em três articulações essenciais:
1. O bispo é cristão entre os cristãos e com os cristãos;
2. O bispo “preside”, mas o seu presidir é um ir à frente, típico de Bom-Pastor, que dá a vida pelo rebanho;
3. O bispo justifica-se a si próprio em nome desta “caridade” para com a Igreja e antes de tudo para com Cristo que o chama a segui-l’O “assim”, o convida à renúncia e à contemplação.
III. Vida clerical (séculos IX-XVI)
No começo da Idade Média, a figura do presbítero perde espírito de vida apostólica. Apesar de alguns presbíteros o continuarem a viver, acentua-se a dimensão clerical. Os concílios deste período foram estabelecendo as directrizes para a vida clerical, impedindo o crescimento da “secularização”. Decalcou-se a separação entre bispo e presbitério como hierarquia; nesta hierarquia, o bispo representa o primeiro nível, o vértice. Mais do que entre cristãos, o bispo está acima e antes. É o mediador e o intermediário.
Na Idade Média assiste-se a altos e baixos de “secularização” e de reforma. A regra de Santo Agostinho polarizou a corrente da vida apostólica, como reacção ao fenómeno da secularização. Muitas novas ordens religiosas se inspiraram no modelo agostiniano. Há dificuldade em separar os campos entre vida monacal (vida no mosteiro segundo uma Regra) e vida no presbitério. Há intercâmbio ou interacção. As comunidades de clérigos surgidas optam por oração do ofício, estudo e ensino.
As novas ordens, conservadoras do modelo agostiniano, foram-se, aos poucos, marginalizando dos presbitérios e da autoridade dos bispos, uma vez que ultrapassavam os limites da diocese. Daí a distinção entre seculares e regulares (estes podiam ser clérigos do presbitério, isto é, cónegos, ou pertencer a uma nova ordem).
A vida “canónica” decaiu no século X quando os bispos permitiram a cada presbítero viver por sua conta (fora da casa e da vida em comum), ainda que ligado ou incardinado na Igreja (diocese). Esta forma de vida tornou-se regra geral.
A reforma gregoriana quis retomar a vida em comum e a pobreza para os presbíteros; assim o prescrevia o Concílio de Roma de 1059. Duas figuras se notabilizam neste esforço por salvar a vida apostólica: S. Pedro Damião (1072) e S. Norberto (1124). O primeiro notabilizou-se pela difusão da vida em comum e pela luta contra a decadência do estado clerical. Para ele, a acção pastoral e a relação com o dom de Cristo na cruz, vivido na eucaristia, são os motivos da santidade do padre.
Apesar destes esforços, torna-se maior a cisão entre clero secular e clero regular. O clero chamado “secular” quer viver a vida canónica sem ficar enquadrado por uma regra; os cónegos eram clérigos que queriam viver esta vida de pobreza e disponibilidade apostólica, segundo os cânones, ou seja, segundo uma regra.
A época escolástica desenvolve uma reflexão teológica sobre o carácter do padre em si mesmo, que marcou os séculos XII e XIII e que teve como principal inspirador Pedro Lombardo, esquecendo quase a relação com o Presbitério, com o seu bispo e com a sua comunidade eclesial concreta. Acentua-se a acção do padre como instrumento da graça e participação na mediação de Cristo.
É no século XII que se desenvolvem as ordenações desligadas das dioceses (o abade do mosteiro ordenava os seus monges), as missas solitárias, os tratados dos sacramentos. Cada vez mais o sacerdócio é definido em relação à Eucaristia. Os grandes escolásticos do século XIII tomam consciência da novidade do sacerdócio do Novo Testamento em relação ao Antigo. Definem-no referindo-o à Eucaristia.
Neste período foram dados os primeiros passos para uma formação sacerdotal organizada. À volta das catedrais e dos mosteiros foram nascendo “escolas”, prevalentemente de formação clerical. Apesar deste esforço a vida clerical decaiu e esta decadência dos séculos XIV e XV preparará os séculos seguintes.
IV. Vida sacerdotal (séculos XVI-XVIII)
Na época de Trento, ressurgem a Teologia e a Espiritualidade presbiteral. Abrem-se perspectivas missionárias e caminhos místicos. Aparecem agrupamentos de clérigos (regulares) e escolas de espiritualidade sacerdotal.
O Concílio de Trento não quis criar um modelo ideal de vida sacerdotal. Só pretendeu criticar os erros luteranos acerca do sacerdócio. A lógica anti-luterana era clara: há um único sacrifício de Cristo. Este é tornado visível na Igreja. Ora, uma vez que há uma ligação querida por Deus entre o sacerdócio e o sacrifício, também deverá existir um sacerdócio visível e externo: é o dos padres. Não pondo de lado a doutrina do sacerdócio comum dos fiéis, usando sistematicamente a palavra sacerdotes para designar os presbíteros, o Concílio criou uma grande confusão de vocabulário. Quis defender o sacerdócio dos padres e desvalorizou o sacerdócio do Povo. Trento valoriza a relação sacerdócio-eucaristia-perdão dos pecados. Acentua a formação sacerdotal, a santidade, a cura pastoral e a pregação da Palavra. Apareceram os Seminários e as escolas de espiritualidade. Superaram-se muitas desordens clericais. Acentuou-se a vida pastoral e espiritual dos padres.
Nesta época é sublinhada a tese de Cristo sacerdote; o sacerdócio ministerial é uma participação no sacerdócio de Cristo. A função primária do sacerdote é a de prestar culto a Deus através da celebração da Eucaristia, cume do culto.
V. Vida pastoral (séculos XIX-XX)
Muitas figuras enchem estes dois séculos como os fundadores de movimentos e organizações de padres e de missões. Multiplicam-se os escritos sobre o sacerdócio. Fomentou-se, no século XIX, uma religiosidade mais “encarnada”, menos intelectual, mais emotiva, mais orientada para formas sensíveis e concretas.
Os modelos de vida presbiteral são polifacetados. Basta recordar: Jean-Marie Vianney, Santo Cura de Ars, patrono dos párocos; Antoine Chévrier, fundador da Associação Sacerdotal do Prado; Cardeal Mercier (1851-1926), um dos principais iniciadores da promoção do clero diocesano.
Após o II Concílio Ecuménico do Vaticano, o presbítero entende-se na Igreja sacramento de comunhão. A ideia teológica base da doutrina conciliar sobre o padre é a Igreja “sacramento”. Cada cristão é um sinal da pessoa de Cristo, segundo o carisma recebido. O padre é sinal pessoal de Cristo Bom Pastor (PO, 2). A sua função é dar corpo no tempo e no lugar à Palavra, ao sacrifício, à acção salvífica e pastoral do Senhor (PO, 4-6). O estilo presbiteral está nesta linha de «ascese própria do pastor de almas» (PO, 13). Aqui se situa o serviço de Cristo Cabeça do rebanho, pelo exercício de uma chefia pastoral.
Se o padre é instrumento vivo de Cristo Sacerdote, é máximo testemunho de amor (PO, 11). A espiritualidade do presbítero é caridade do Bom Pastor. Acentua-se uma espiritualidade de serviço.
O padre sentiu e sente a dúvida sobre o seu estilo numa sociedade diversa, sobre a sua natureza, identidade e razão de ser numa sociedade de valores plurais.
O II Concílio do Vaticano deu carácter mais preciso à função específica dos padres, coligando o seu ministério com a Ordem Episcopal, em orgânico exercício. O padre participa da autoridade mediante a qual Cristo constrói, santifica e governa a Igreja. É uma autoridade ministerial. Pela ordenação, os padres são assinalados e configurados.
Na prática consequente ao Concílio de Trento, o conteúdo da missão era limitado ao poder propriamente sacerdotal, cultual sobre a Eucaristia. Ser padre era dizer missa. Para o II Concílio do Vaticano, o conteúdo do ministério presbiteral é muito mais amplo: trata-se de uma obra de evangelização. O padre é padre enquanto ministro do Evangelho entre os pagãos, ministro de incorporação da Igreja, ministro da celebração eucarística. O Concílio sublinha que toda a actividade do padre deve ser teocêntrica: o padre não deve agir senão para glória de Deus!
Esta breve memória histórica que fizemos é provocadora, porque cada momento histórico foi desvelando traços da figura modelar de Cristo, único Sacerdote e Bom Pastor. Há valores permanentes. Há novos problemas. Há diferentes graças em situações históricas novas. Tantos foram os que, durante estes vinte séculos, mantiveram vivo o pastoreio de Cristo, pela forma lúcida como se abriram à Graça!
Arnaldo Vareiro