segunda-feira, 16 de novembro de 2009

INTRODUÇÃO À DEI VERBUM


  1. Propósito do Ano Pastoral

No ano pastoral 2009-2010 seremos conduzidos pela mesma Palavra para a acolher e viver. «Acolhemos a Palavra» é o lema que nos acompanhará suscitando outras iniciativas. Importa que o acolher se oriente para o viver. Não pretendemos saborear egoisticamente um dom oferecido. Sabemos que tudo se projecta na vida e que o mundo necessita de ler a Palavra divina no quotidiano dos nossos pensamentos e acções. […] Este ano, temos como instrumento de trabalho essencial a Constituição Dogmática “Dei Verbum”, um precioso documento introdutório para a leitura e escuta orante da Palavra de Deus.


  1. Introdução


    1. O Mundo da Palavra Humana

Deus falou na Sagrada Escritura por meio de homens e de maneira humana” (DV 12).

A história da Bíblia é história da Palavra de Deus aos homens. O AT e o NT descrevem-nos o itinerário da Palavra de Deus, a qual: cria o mundo (Gn 1), chama Abraão (Gn 12, 1ss), é dirigida aos profetas de Israel (Os 1,1; Jr 1,2 etc); assume o rosto de homem em Jesus de Nazaré (Jo 1, 1-14), “difunde-se, cresce e afirma-se com força” com a dilatação da Igreja apostólica (Act 6,7; 12,24; 19,20), regula o fim do universo e o início do novo mundo (Ap 19, 11-16; 21,1ss).

Ela é-nos sempre dada pela mediação humana.

Nisto manifestou-se a “admirável condescência de Deus e a sua inefável benignidade”: Com efeito, as palavras de Deus, expressas em línguas humanas, tornaram-se semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do Eterno Pai, tomando a carne da fraqueza humana, se tornou semelhante aos homens” (DV 13)

Falando na linguagem dos homens, Deus ama-os e comunica-Se com eles, restituindo à linguagem humana a sua vericidade.


    1. Homo loquens”

Homem como animal que fala. A palavra introduz-nos no mundo humano. Falar, dar um nome, é de certa forma chamar à existência, tirar do nada.

O Adão bíblico penetra o ser de cada animal para dar-lhe um nome (cf. Gn 2, 19-20). A imposição do nome é um “acto da actividade ordenadora com a qual o homem se apodera espiritualmente das criaturas, objectivando-as diante de si”1.

Através da palavra, o homem passa a morar em si mesmo e de certa forma apropria-se de si. Ele procura a sua “autocompreensão”. Ele tem necessidade da disciplina da palavra para compreender-se e exprimir-se > mistério do ser-homem. A Palavra possibilita-lhe a comunicação com o outro. A palavra humana deveria exprimir uma “meta-física” das relações. Se as palavras não reflectirem e não colocarem em acção a dinamicidade criativa da relação, se as palavras não forem continuamente retomadas e actualizadas, elas estarão destinadas a degradar-se.


3. As três funções da Palavra

3.1. A palavra é “informação”


A palavra informa sobre factos, acontecimentos, coisas, geralmente enpregando um verbo no indicativo e na terceira pessoa. A linguagem das ciências exactas tem um formulário técnico e rigoroso. Na linguagem da didáctica prevalece a informação objectiva, mas todo o docente sabe muito bem que não pode prescindir daquela dimensão “formativa”. Na historiografia, o narrar não pode esgotar-se na simples apresentação dos factos, mas deverá ter uma certa dose subjectiva positiva: a palavra, que dá vida ao facto narrado, é “sua” (expressão) e convoca o leitor (apelo).


3.2. A palavra é “expressão”


Todo o homem que fala exprime-se, diz alguma coisa de si mesmo. Para comunicar-se e “informar”, o Homem deve, em certa medida, exprimir-se, ou seja, pôr em movimento o seu ser, correr o risco de saída de si, dispondo-se a um desmascaramento mínimo de sua interioridade (ex.: Abraão – sai de ti, vai para ti).


3.3. A palavra é “apelo”


A palavra humana, por sua natureza, busca o outro, tem paixão pelo outro, porque o homem é “relação”. Mais uma vez, o Adão bíblico é emblemático. Vejamos (Gn 2, 18). Adão dá um nome aos animais, mas não fala aos animais; ele busca um “tu”capaz de compreender e acolher a exigência interior de dar-se livremente. Vive para o encontro e a comunicação. Vive de encontro e comunicação. A palavra é o traço-de-união entre o “eu” e o “tu”, princípio original de toda a comunhão renovada.


4. A Palavra é criativa


A palavra, directa ou indirectamente, é sempre “apelo” a outro e exige, por sua natureza, uma resposta. A palavra não poderá deixar de provocar uma livre ressonância no “tu” que é intimamente tocado.

A palavra dá a cada um a revelação de si na relação recíproca com o outro. O homem faz-se “eu” no diálogo com um “tu”. Toda a palavra, proferida ou ouvida, tem a possibilidade de despertar. Na reciprocidade do “eu” e do “tu”, a palavra tende a criar a unidade do “nós”.


5. A linguagem da amizade e do amor


No encontro de amizade com o outro, o amigo não teme realizar o tremendo trabalho de libertar o sentido secreto do seu ser. E, depois de ter comunicado livremente o seu eu e de tê-lo oferecido ao livre acolhimento do outro, o amigo pode recomeçar o itinerário nunca definitvo da descoberta de si e do outro. Meias-palavras, alusões, silêncios, olhares, podem dizer muito mais do que muitas palavras exactíssimas.

Na palavra da amizade e do amor, “cada qual dá ao outro a hospitilidade essencial, o melhor de si”. Santo Agostinho diz: “Se não temos, nenhuma coisa neste mundo nos parecerá amável.”

O “eu” e o “tu”, tornados “nós na amizade, tocam o invisível e intocável “Tu” divino. Vejamos a experiência de Agostinho e sua mãe Mónica, evocada nas Confissões:

“Ao aproximar-se do dia em que devia sair desta vida, dia conhecido a Ti, desconhecido a nós, aconteceu, por obra Tua, creio, segundo os Teus misteriosos desígnios, que nos encontrássemos ela e eu sozinhos, apoiados numa janela que dava para o jardim da casa que nos hospedava, lá junto a Ostia Tiberina, longe dos rumores da multidão, procurando restaurar-nos da fadiga de uma longa viagem e tendo em vista a travessia do mar. conversávamos, pois, sozinhos com grande doçura (...). buscávamos entre nós a presença da Verdade, que és Tu, procurando entender qual seria a vida eterna dos santos (...). Abrimos avidamente a boca do coração ao jacto supremo da tua fonte, a fonte da vida (...). Elevando-nos com o mais ardente ímpeto de amor para o próprio Ser, percorremos todas as coisas corpóreas e o próprio céu (...). E ainda subindo acima de nós mesmos com a consideração, a exaltação, admiração das Tuas obras, chegamos às nossas almas e superamos também estas para alcançar a região da abundância inexaurível, onde apascentas Israel para sempre com a pastagem da verdade, e onde a vida é a Sabedoria (...). E enquanto falávamos dela e nos sentíamos atraídos por ela, pudemos captá-la um pouco com o ímpeto total da mente, e suspirando deixamos ali presas as primícias do espírito, para tornar a descer depois ao som vazio das nossas bocas, onde a palavra tem princípio e fim”2.


6. A Palavra amiga de Deus


A DV do II Concílio do Vaticano fala nestes termos da Revelação: “Em virtude desta Revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como a amigos e conversa com eles para os convidar e admitir a participarem da Sua própria vida.” (DV 2).

A Revelação de Deus é descrita com a categoria da palavra, mais ainda, do diálogo amigável. Para revelar-se, Deus falou aos homens e usou a linguagem humana da amizade com uma finalidade precisa que é a comunhão de vida.


7. A “Dei Verbum”, pórtico da Bíblia


Esta constituição foi promulgada oficialmente pelo Papa Paulo VI a 18 de Novembro de 1965. Esta constituição é logicamente o primeiro dos grandes documentos do Vaticano II.

Hoje, vamos ler a analisar o proémio (prólogo), quem na realidade introduz no conjunto da obra conciliar.


1. O sagrado Concílio, ouvindo com devoção a Palavra de Deus e proclamando-a desassombradamente, faz suas as palavras de S. João, quando diz: “anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós; o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com Seu Filho, Jesus Cristo” (1 Jo 1, 2-3). Por isso, seguindo as pisadas dos Concílios de Trento e Vaticano I, propõe-se expor a genuína doutrina sobre a Revelação Divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo a mensagem da salvação, acredite; acreditando, espere; esperando, ame.


  1. Dei Verbum. Estas duas palavras expressam na realidade todo o conteúdo. Deus, o Deus vivente, falou à humanidade. O termo “palavra de Deus” aplica-se primariamente à revelação, a esta primeira intervenção pela qual Deus sai do seu mistério, dirige-se à humanidade para desvelar-lhe os segredos da vida divina e comunicar-lhe o seu desígnio salvífico. Este é o feito, a acção que domina os dois testamentos e do qual a Igreja vive. Esta palavra de Deus, dirigida uma vez para sempre, perdura através dos séculos, sempre viva e actual, na Tradição e na Escritura.

A atitude da Igreja: escuta e proclama a palavra de Deus. Com fé, recebe a palavra do Senhor e, em virtude da sua missão profética que recebeu de Cristo, a proclama.

Este texto enuncia, em termos bíblicos, o essencial da constituição. A vida, que estava no Pai, junto do Pai, foi-nos manifestada. Deus saiu do seu mistério e, por mercê da humanidade de Cristo, João pode ver e ouvir o Verbo de vida. João anuncia o que viu e ouviu, a fim de que os homens, mediante a fé no seu testemunho, participem nesta experiência e, com ele, entrem em comunhão de vida com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo. Epifania de Deus em Jesus Cristo, mediação do testemunho apostólico, a mediação de nós, catequistas, participação do homem na vida trinitária. O texto de João descreve todo o movimento da revelação: a vida em Deus, a vida que baixa até ao homem e, em Jesus Cristo, manifesta-se para levar à comunhão de vida, para tornar à fonte da vida – o Pai.


2. A segunda frase indica a finalidade da constituição. O Concílio propõe-se expôr a verdadeira doutrina acerca da Revelação e da sua transmissão numa linha de continuidade/ruptura.

1 G. Von Rad, Genesi, Paideia, Brescia, 1978, 2ª ed., p. 102.

2S. Agostinho, Confissões, 9, 10, 23-24.

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