terça-feira, 30 de março de 2010

EUCARISTIA, NUTRIÇÃO DOS FILHOS DE DEUS

O Tríduo Pascal do Senhor (Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus) começa na tarde de Quinta-Feira Santa, na qual Jesus institui, no Cenáculo de Jerusalém, a Santíssima Eucaristia e o Sacerdócio. A Igreja, todos nós como baptizados, é convidada a encetar com o Senhor Jesus este caminho desde o Cenáculo até à manhã de Páscoa. Este caminho inicia-se com a celebração da Eucaristia, na qual Jesus antecipa a sua entrega total na Cruz. Neste Ano Sacerdotal, reveste-se de particular importância este dia. Somos convidados a dar graças pelo dom do sacerdócio ministerial pelo qual Jesus Cristo perpetua o Seu Sacramento de Amor e a aproximar-mo-nos mais e melhor deste Amor doado totalmente. Para nos ajudar viver melhor este dia e em continuação do que partilhei convosco no número anterior, partilho convosco uma catequese que S. João Maria Vianney proferiu em Ars sobre a comunhão de Jesus Eucaristia:
“Meus filhos, todos os seres da criação têm necessidade de se nutrirem para viver; foi para isso que Deus fez crescer as árvores e as plantas; é uma mesa bem servida onde todos os animais vêm cada um tomar o alimento que lhe convém. Mas é necessário que a alma também se nutra. Onde está, pois, o seu alimento?... Meus filhos, quando Deus quis dar alimento à nossa alma para a sustentar na sua peregrinação neste mundo, olhou para todas as coisas criadas e não encontrou nada digno dela. Então concentrou-se em si mesmo e resolveu dar-Se a si próprio...
Oh! Minha alma, como és grande! Só Deus te pode contentar!... O alimento da alma é o Corpo e o Sangue de Deus!... Oh! Formoso alimento! A alma não se pode alimentar senão de Deus. Só Deus lhe pode bastar. Só Deus a pode saciar. Fora de Deus não há nada que possa saciar a sua fome. Necessita absolutamente de Deus... Que ditosas são as almas puras unidas a Deus pela comunhão. No céu resplandecerão como formosos diamantes porque Deus Se reflectirá nelas... Oh! Vida ditosa! Alimentar-se de Deus! Oh! homem, como és grande. Nutrido, abeberado com o Corpo e o Sangue de um Deus! Ide, pois, comungar, meus filhos!...”

Que palavras cheias de ardorosos apelos e exclamações sublimes nos deixa o Cura d' Ars! Somos convidados a permanecer no Lado Aberto do Senhor Jesus, trespassado no alto da Cruz. Pela comunhão eucarística, o Coração de Jesus estende a sua morada a cada coração humano. No Coração de Cristo, o Pai prepara-nos um banquete, ao qual não devemos faltar, pois a Eucaristia é o maior dom do amor de Deus e é necessário corresponder a tal dom. O Amor reclama amor.
Neste tempo pascal, saibamos permanecer, pela comunhão eucarística, mergulhados no abismo de misericórdia e beleza, isto é, na chaga aberta para sempre do Lado de Cristo, na e pela qual fomos salvos e redimidos dos nossos pecados!
Arnaldo Vareiro

sábado, 27 de março de 2010

O JESUS DA PÁSCOA

Não é fácil descrever o Jesus da sua última semana entre os humanos. Contudo, com os textos bíblicos nas mãos, poderíamos entrar no seu coração para percorrer com Ele o duro caminho da Paixão à alegria da Páscoa.

A entrada triunfal em Jerusalém não pode ter produzido n’ Ele os efeitos de uma mudança de consciência para o fazer sucumbir diante de tanto triunfalismo. Já o tinha pré-anunciado três vezes: o Filho do Homem devia sofrer e morrer em Jerusalém. Esta consciência da sua missão unia-se à compaixão de ver o seu povo “com ovelhas sem pastor”, à espera de um Messias e um Reino que tinham muito pouco a ver com Ele e com a sua mensagem. Jesus seguramente sabia que o “Hossana!” desse domingo se transformaria no “Crucifica-O” da Sexta-Feira Santa.

Dois dias antes da celebração da Páscoa com os seus discípulos, Jesus sai de Jerusalém para Betânia, a poucos quilómetros dali, onde Maria, a irmã de Lázaro, antecipa a sua sepultura ungindo-lhe a cabeça com um perfume valioso (Jo 12, 1-8). Betânia, para Jesus, era o lugar da amizade, era o calor do lar fraterno, onde o Mestre parece procurar a força humana oferecida pela proximidade dos amigos, antes de enfrentar a dor da traição de judas.

A dor que essa traição pode ter provocado em Jesus é incalculável. Sobretudo se a unirmos às traições dos outros discípulos que, embora sem receberem trinta moedas de prata como recompensa, adormecem quando Ele lhes pede que velem ao seu lado, não duvidam em abandoná-lo quando é levado ao tribunal e, inclusive, negam tê-Lo conhecido, como Pedro na noite de Sexta-feira Santa.

Os maus-tratos dos dois tribunais, a incompreensão da sua missão por parte de quem – supunha-se – melhor O devia entender, a humilhação das zombarias e o escárnio dos soldados, a sede, a dor dos chicotes, o peso da cruz... pouco a pouco iam destruindo o seu corpo para revelar a grandeza de Deus.

As dores sobre a cruz, a lenta agonia de quase três horas, são indescritíveis. Só nos resta contemplar em silêncio, ou melhor, descrevê-los servindo-nos do quarto cântico do Servo de Iahveh que Isaías escrevera:

“(...) Muitos ficaram espantados por causa dele, pois já não parecia gente, tinha perdido toda a aparência humana... desprezado e rejeitado pelos homens, homem de sofrimento e experimentado na dor; como indivíduo diante do qual se tapa o rosto, ele era desprezado e não fizemos caso dele... Foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca... Foi preso e julgado injustamente... A sua sepultura foi colocada junto dos ímpios e o seu túmulo junto dos ricos, embora nunca a mentira estivesse na sua boca...” (Is 52, 14; 53, 3-4. 7-9).

O Gólgota marca o ponto final do aparente fracasso: “Tudo está consumado” (Jo 19, 30). Jesus morre na cruz.

Contudo, no primeiro dia da semana, com as primeiras luzes da aurora, Jesus Ressuscitado aparecerá às mulheres que, chorando no sepulcro, pensam que alguém roubou o seu Senhor. Se o seu corpo glorioso não lhes permite reconhecê-Lo imediatamente, a doçura inconfundível da sua voz volta a expressar a compaixão de sempre: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” (Jo 20, 15).

E, ante a tentação da mulher para O deter, responderá com o desapego necessário para a missão que começa: “Vai dizer aos meus irmãos...” (Jo 20, 17).

A partir desse momento, à luz da Ressurreição, a Igreja celebrará, catequizará e anunciará o Senhor Jesus que, sendo embora de condição divina, “não Se apegou à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a Si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens. Assim, apresentando-Se como simples homem, humilhou-Se a Si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso, Deus O exaltou grandemente, e Lhe deu o Nome que está acima de qualquer outro nome; para que, ao Nome de Jesus, se dobre todo o joelho no Céu, na Terra e sob a Terra; e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fl 2, 6-11).

Através dos séculos, a genuína pregação da Igreja é a que foi fiel a este “Kerigma”, a este anúncio de Cristo crucificado; mas ao mesmo tempo ressuscitado pelo poder do Pai e constituído por Ele “Senhor e Messias” (cf. Act 2, 36).

Devemos aceitar que durante muito tempo a pregação e piedade popular tenham posto o acento na morte, ocultando a Ressurreição de Jesus.

É oportuno, por isso, realçar que essa “espiritualidade da cruz” também deve “ressuscitar” à luz da Vida nova do Ressuscitado.

A Igreja está ao serviço da vida porque é o corpo de Cristo, o Senhor da Vida. Desta forma, pretende tornar suas, em cada dia, as palavras de Jesus: “Eu vim para que tenham Vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).


Arnaldo Vareiro

sábado, 13 de março de 2010

Capítulo I da Dei Verbum - A REVELAÇÃO EM SI MESMA

(Natureza e objecto da Revelação)


2. Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério da sua vontade, por meio do qual os homens, através de Cristo, Verbo Incarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e n' Ele se tornam participantes da natureza divina. Por consequência, em virtude desta revelação, Deus invisível, na abundância do seu amor, fala aos homens como a amigos e dialoga com eles, para os convidar à comunhão com Ele e nela os receber.

Este plano “da revelação” concretiza-se por meio de palavras e acções intimamente ligadas entre si, de tal modo que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras. As palavras, porém, proclamam as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Todavia, o conteúdo profundo da verdade tanto a respeito de Deus como da salvação dos homens, manifesta-se-nos por esta revelação na pessoa de Cristo, que é simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelação.


A revelação aqui descrita é a revelação na sua fase activa e constituinte, que se concretiza pelas vias da história e da encarnação. Ela é um efeito do beneplácito de Deus: placuit (cf Ef 1, 9-10). É graça. É livre iniciativa de Deus. É obra de amor, que procede da bondade e da sabedoria de Deus. Reparemos que a bondade de Deus é colocada, pelo texto, em primeiro plano.

O Concílio personaliza a noção de revelação: antes de dar a conhecer algo, isto é, o desígnio de salvação, o próprio Deus se revela. Veja-se como o mistério Paulino evoca este desígnio salvífico. O mistério é o plano divino total; o mistério é Cristo.

Em que consiste o plano salvífico acerca da humanidade? O desígnio de Deus consiste em que os homens, por Cristo, Verbo encarnado, tenham acesso ao Pai (Ef 2, 18) no Espírito e se tornem participantes da natureza divina (2 Pe 1, 4). Este desígnio, expresso em termos de relações interpessoais, inclui os três principais mistérios do cristianismo: a Trindade, a encarnação e a graça.

Depois de afirmar o plano e o objecto da revelação, o concílio precisa a sua natureza. Deus, na superabundância do seu amor, sai do seu mistério. Deus rompe o silêncio: dirige-se ao homem, interpela-o e inicia com ele um diálogo de amizade, como fez com Moisés (Ex 33, 11) e com os apóstolos (Jo 15, 14-15).

Deus conversa com os homens para convidá-los à comunhão consigo e para recebê-los na sua companhia (Baruc 3, 38). Pela encarnação, Deus entra na existência humana, vive com os homens. Jesus Cristo é a sabedoria de Deus que baixou à terra e relacionou-se com os homens, falou-lhes.

Deus falou à humanidade pela palavra. O nosso Deus é o Deus da palavra: fala a Abraão, a Moisés, aos profetas, por meio deles, ao povo. Por Cristo, Deus fala aos apóstolos e nos fala, porque nele nos fala o Filho em pessoa. É uma palavra de amizade: procede do amor, cresce na amizade e realiza uma obra de amor. Deus entra em comunicação com o homem, sua criatura, para estreitar com ele laços de amizade e para associá-lo à sua vida íntima. A revelação quer introduzir o homem na sociedade de amor que é a Trindade.

O homem pode comunicar-se com outro homem de múltiplas formas (gestos, acções, palavras, imagens... Assim também Deus pode comunicar-se com o homem. A revelação revela-nos a forma adoptada por Deus para falar à humanidade. Deus põe-se em comunicação com o homem pelas vias da encarnação e da história.

O concílio afirma que a revelação realiza-se mediante a conexão íntima de gestos e palavras. Pela palavra temos de entender as acções salvíficas de Deus: umas realizadas directamente por Deus, outras pelos profetas, seus instrumentos. No AT: o êxodo, a formação do reino, o desterro, a restauração; no NT: as acções da vida de Cristo, especialmente os seus milagres, a sua morte e ressurreição. Palavras são as palavras de Moisés e dos profetas que interpretam as intervenções de Deus na história; são as palavras de Cristo que declaram o sentido das suas acções; são as palavras dos apóstolos, testemunhas e intérpretes autorizados da vida de Cristo. As obras e palavras estão em estreita dependência e para serviço mútuo. O Deus que se revela é um Deus que entre na história e nela se revela como pessoa que opera a salvação do seu povo > libertação. Estas obras corroboram, isto é, apoiam, confirmam, atestam a doutrina e a realidade profunda, misteriosa, escondida nas obras e significada nas palavras. As palavras proclamam as obras e esclarecem o mistério contido nelas. Vejamos o que se passa no Êxodo: sem a palavra de Moisés que, em nome de Deus, interpreta para Israel esta saída como libertação tendo em vista uma aliança, o acontecimento não estaria carregado de plenitude de sentido que constitui o fundamento da religião de Israel. Os acontecimentos estão cheios de inteligibilidade religiosa e as palavras têm a missão de proclamá-la e esclarecê-la.

Ao insistir nas obras e nas palavras como elementos constittutivos da revelação, o concílio quer sublinhar o carácter histórico e sacramental da revelação: os acontecimentos iluminados pela palavra dos profetas, de Cristo e dos apóstolos. O carácter histórico da revelação aparece na acção mesma de Deus que sai do seu mistério e entra na história. O carácter sacramental da revelação aparece na compenetração e ajuda mútua de palavras e obras. Deus realiza o acontecimento de salvação e explica o seu significado. Opera e comenta a sua acção.


Por esta revelação nos manifesta, em Cristo, a verdade profunda acerca de Deus e do homem. Cristo diz-nos quem é Deus: o Pai que nos criou e nos ama como filhos; manifesta-nos também o Filho e palavra, que nos chama e convida a uma comunhão de vida com a Trindade, e o Espírito, que vivifica e santifica. Em Cristo, se nos revela também a verdade acerca do homem, isto é, que foi chamado e escolhido por Deus desde antes a criação do mundo para ser, em Cristo, filho adoptivo do Pai.

Cristo é o mediador e a plenitude da revelação. É a via escolhida por Deus para dar-nos a conhecer quem é Ele (Pai, Filho e o Espírito) e o que somos nós (pecadores chamados à vida). Cristo é a plenitude da revelação, isto é, é o Deus que revela e o Deus revelado, o autor e o objecto da revelação, o que revela o mistério e o mistério mesmo em pessoa (Jo 14, 6; 2 Cor 4, 4-6; Ef 1, 3-14; Col 1, 26-27). É em pessoa a verdade que anuncia e fala. Esta verdade que nele resplandece pede a adesão do nosso espírito: quer invadir a nossa vida para transformá-la e transformar-mo-nos em Cristo; tende, pela união com Cristo, à comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito.

(Preparação da revelação evangélica)


3. Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo, oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na obra da criação e, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se pessoalmente, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Porém, depois da sua queda, tendo-lhes prometido a redenção, deu-lhes a esperança da salvação e cuidou continuamente do género humano, a fim de dar a vida eterna a todos aqueles que, pela perseverança na prática das boas obras, procuram a salvação. A seu tempo chamou Abraão, para fazer dele um grande povo, povo esse que, depois dos Patriarcas ensinou por meio de Moisés e dos Profetas, para que o reconhecessem como único Deus, vivo e verdadeiro, Pai providente e justo juiz, e para que esperassem o Salvador prometido. Desta forma, preparou Deus, através dos séculos, o caminho do Evangelho.


A primeira manifestação de Deus deu-se na Criação. Deus revelou-se a nossos primeiros pais pela revelação histórica e pessoal.

Etapas da revelação veterotestamentária: promessa aos nossos primeiros pais; vocação de Abraão; instrução do povo eleito por Moisés e pelos profetas.

Depois da queda dos nossos primeiros pais (pecado original), Deus levantou-os pela promessa da redenção. Com a promessa começa a história da salvação, na qual todos são incluídos, ninguém fica excluído. O Povo de Israel é o depositário desta promessa.

Deus chama Abraão para o fazer pai de um grande povo, que é instruído através de Moisés e dos profetas. Deus forma o Seu povo para que reconheça n' Ele o Deus vivo e verdadeiro, o Pai que cuida dos seus filhos e para que espere o salvador prometido.

O texto do Concílio apresenta-nos a revelação como sábia pedagogia que forma e prepara o povo.

Arnaldo Vareiro